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Safra Vermelha - Dashiell Hammett




Antes de iniciar esta resenha devo dizer: Safra Vermelha é uma bobagem, uma deliciosa bobagem. Me interessei pelo romance devido ao meu fascínio pelos filmes noir, gênero cinematográfico que explorava o universo do submundo criminoso americano. Quando procurava algo na biblioteca para ler, vi, com o semblante empolgado, em suas desorganizadas prateleiras, um encardido exemplar desta obra de Dashiell Hammett, tratava-se, recordei, do mesmo autor do excepcional “Falcão Maltês”. Não tive dúvidas, aluguei o livro louco para iniciar a leitura. Já sabia que o texto não tinha grandes qualidades literárias, procurava apenas diversão; e agora, tenho certeza, meu entretenimento valeu muito, e em breve repetirei a dose.

Como dito, sou viciado em filmes noir; a estética cheia de contrastes entre o claro e o escuro que intensificava a ambiguidade comportamental dos personagens; o herói cheio de fraquezas e vícios; e, sobretudo, as femme fatales, mulheres manipuladoras que fingiam fragilidade para lograr seus objetivos escusos; são uns dos fatores que explicam este meu delírio pelo gênero. Gostar deste filão cinematográfico foi o primeiro passo para adentrar às veredas da literatura policial. Confesso que tudo que li neste original formato me pareceu mal escrito; não eram apenas os personagens que falavam de forma chula e desagradável, a própria narração seguia este escopo; em muitos momentos sentia que tudo encaixava-se perfeitamente, no entanto, alguns incompreensíveis erros de concordância torturavam-me um pouco (não sei em quem colocar a culpa, no autor ou no tradutor), em certos trechos podemos encontrar a mistura do plural com o singular e uma falta de lógica e cuidado na utilização do feminino e do masculino. Ao menos neste aspecto os filmes destoavam completamente dos livros, se estes não se preocupavam com a forma, aqueles, ao contrário, desenvolveram, com delicado melindre e apreço pela manipulação imagética, recursos de linguagem importantíssimo para a evolução da sétima arte. Não quero fazer comparações entre o cinema e a literatura, como já explanado em um texto anterior, repito: ambas são manifestações artísticas sublimes, e devem ser consumidas com prazer e devoção.

“Safra Vermelha” conta a estória da pequena cidade de Personville, chamadas por muitos de Poinsonville (cidade veneno); tudo começa com o assassinato de Donald Willsson, filho do magnata e “dono” da cidade Elihu Willsson. O detetive, sem nome definido, narrador e personagem principal da trama, encarrega-se do caso, passando a investigar as tortuosas relações criminosas envolvendo os marginais e a polícia. Após desvendar o crime, decide desmantelar toda a organização criminosa que dominava a cidade, para tanto desenvolve uma estratégia peculiar, cria situações e soluciona mistérios envolvendo os escroques bandidos, para acentuar a rivalidade entre eles. Ao induzir os antigos aliados ao desacordo e à quizília, nosso sábio narrador provoca indiretamente uma matança desmensurada; aos poucos todos os crápulas que dominavam o crime vão morrendo, seja através de tocaias, tiroteios violentos ou vinganças sanguinárias. Dashiell Hammett não poupa esforços para intensificar a atmosfera sombria que envolve a estória, em quase todas as páginas encontramos um assassinato diferente que sempre é narrado com uma frieza e uma indiferença brutal, até os personagens importantes, quando são mortos, não recebem tratamento diferenciado; o homicídio para Hammett, assim como a corrupção na política para nós, parece algo corriqueiro, e descrever o crime, para o autor, é o mesmo que narrar um jantar ou um passeio na praça, não há qualquer mistificação no evento, afinal, seus personagens são quase desprovidos de sentimentos coletivos; ao ler as páginas de seu romance, temos a impressão de adentrar em um ambiente que preza e respeita uma única lei, a máxima capitalista do “cada um por si”, ou seja, não há solidariedade apenas individualismo, sendo assim, a morte do outro não é nada para os que continuam vivos, somos descartáveis, lixo que sequer pode ser reciclado.

Como toda boa estória policial temos em Safra Vermelha uma femme fatale, a prostituta Dinah Brand. Bela porém marcada pelo tempo, a pérfida bacante não perde nenhuma oportunidade para galgar vantagens pecuniárias, trai seus aliados e ajuda seus inimigos conforme a melhor oferta. Bastante sedutora ela manipulava quase toda a horda de bandidos que infestavam Poinsonville, nosso herói e perspicaz narrador talvez tenha sido o único a sobreviver aos garbosos e ao mesmo tempo vulgares galanteios da pútrida mulher. Apesar de sua inteligência interesseira Brand não se livra, assim como quase todos os personagens, de um destino cruel.

Os policiais da trama não se diferenciavam dos delinquentes, aliás a polícia era até mais corrupta e traiçoeira, o próprio chefe Noonan tinha características de personalidade que o aproximava dos piores vilões do grandes romances históricos. Sendo sincero, não me lembro de nenhuma atitude digna de respeito em todo o enredo de Safra Vermelha, nem mesmo o detetive possuía algum traço dignificante; há em Poinsonville apenas escória, lixo e perversão. No final do romance o único criminoso que sobrevive ao período sanguinário é o magnata soberano dos delitos Elihu Willsson; é curioso, mas, assim como no sistema capitalista, o mundo do crime pode sofrer um baque passageiro, no entanto ele sempre recupera suas forças, amoldando-se às novas realidades; a ponta do câncer nunca é vencida, e ela, constantemente, evolui mais forte e com o vigor rejuvenescido.

Para terminar devo reafirmar que Safra Vermelha é uma grande diversão. Para os que gostam de muita ação e sangue o livro é uma excelente opção de leitura. Relaxem e, se possível, gozem.

Avaliação: 6,5/10
FG

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