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Noites Brancas - Fiódor Dostoiévski



Ao passar os olhos pelas minhas resenhas literárias anteriores, percebi que todas elas foram muito pessoais; utilizei a primeira pessoa em boa parte do desenvolvimento dos meus comentários, dando, inclusive, preferência às sensações íntimas que tive com a leitura em detrimento do enredo ou à qualquer outro tipo de análise objetiva. Eu poderia chamar esta peculiar característica de estilo, mas, confesso, trata-se, na verdade, de grande inabilidade textual; negligenciar a impessoalidade é um recurso ingênuo que reflete uma pureza destituída de malícia, porque, aos olhos de quem escreve, destrinchar um enxame de subjetivas emoções pode parecer extremamente atraente; as palavras, neste contexto, ganham vida, reverberam em um vale montanhoso de intimidade, geram ressonância nas paredes infinitas do próprio âmago; no entanto, para os leitores, tais impressões são insípidas, não há motivos para se informar sobre os processos de leitura de indivíduos desconhecidos; lágrimas que escorrem junto a uma atmosfera de assombro, o enfado pútrido causado por páginas mal escritas, o sorriso de uma cena hilária, ou a prostração diante de algo grandioso, são frases que, salvo raras exceções, devem ser evitadas, pois elas não comunicam nada de relevante ao leitor, a não ser nos casos em que estes compartilhem das mesmas experiências do resenhista. É esta ressalva que anestesia a dor de meu fracasso; quando escrevo já conheço meus leitores, eles são vários, múltiplas facetas de um mesmo indivíduo, a mais legítima fusão do Eu com os outros. Imbuído de um espírito prático, desenvolvo meu próprio sustento, meus textos são ferramentas construídas pelas mesmas mãos que afagam minhas faces lânguidas; a solidão, a intensificação de uma personalidade taciturna, e os sonhos progressivamente diluídos com o tempo, são elementos instigadores não só de minha escrita, mas, sobretudo, do meu Eu. Este, ao tentar se afirmar como ser que existe, mas sendo incapaz de se impor perante os outros, cria um universo fantástico, habitado por sombras que discursam entre elas, se exasperam, brigam aos tapas, inventam emoções fugazes ao imaginar que o nada guarda um complexo de relações humanas; contudo, este Eu, ao abrir os olhos à realidade, percebe que nada criou, nada viveu e nada fez, foi apenas um sujeito preso em si mesmo que, impossibilitado de compartilhar emoções, deixou de existir. Para a velha máxima socialista do “sozinho não somos nada”, lanço melancólicas risadas, tentando transformá-las em histéricas gargalhadas, naquele tipo de alegria asquerosa que, antes de aviltar o outro, humilha a si próprio.

Feito o desabafo, posso iniciar este novo texto. Para os que já leram a novela, fica evidente minha identificação instantânea com o personagem principal e narrador da estória, um recluso sonhador que vivia grandes conflitos internos, mas que na realidade concreta tinha muito pouco a contar. Mesmo morando a oito anos em São Petersburgo, nosso herói não possuía quase nenhuma relação, passeava, pelas avenidas largas da metrópole europeia, solitário e taciturno; anônimo, sentia uma intensa necessidade de se relacionar, precisava conhecer pessoas, se libertar de sua prisão interior, sair do universo dos sonhos para encontrar a chave do mundo real. O narrador em momento algum é nomeado, este detalhe da obra potencializa a própria caracterização do protagonista, um sujeito que existia sem viver ou vivia sem existir, era um nada, um aborto que misteriosamente chegou à vida.

Em uma noite de verão, caminhando alegremente próximo ao rio Nievá, o narrador conhece a tristonha donzela Nástienka, jovem que durante todas as noites ficava sobre a balaustrada do canal, esperando seu antigo amado. Para nosso herói, conhecer tenra senhorita era um passo gigantesco de socialização, o início de um percurso que o retiraria de seu onírico mundo das sombras para realocá-lo à materialidade da vida, era sua chance de ser, existir. Junto a esta expectativa surge, como era presumível, o amor; a jovem delicadamente encantadora, sendo o molde da sua esperança renascida, o deixa inebriado; tudo nela é belo, a ingenuidade, o sofrimento e seu espírito de criança abandonada. Com o coração inflamado de paixão, o solitário narrador repreende seus sentimentos pela jovem, a amizade que nasce entre os dois em seus efêmeros encontros cria, entre eles, laços de cooperação, e sem vislumbrar qualquer futuro romântico ao lado de Nástienka, nosso herói decide ajudá-la a reencontrar seu homem amado.

Todo o relacionamento dos jovens protagonistas desta novela se resume a quatro espectrais noites brancas. O verão petersburguês dava ao período noturno um aspecto fantasmagórico, a névoa oriunda do sol que, nesta época do ano, não se punha completamente, criava uma atmosfera de delírio, como se a realidade se misturasse à imaginação. Para o narrador, Nástienka representava o seu existir para além do imaterial; ele, refletindo sobre sua própria condição, conclui que, se nada mais vivesse, apenas as noites brancas à beira do Nievá e ao lado de sua apaixonante donzela seriam suficientes para resignar-se com todo o resto, pois as inefáveis lembranças desses encontros o encorajaria a viver novamente seus dias solitários. No entanto, diante do insucesso de Nástienka em reencontrar sua antiga paixão, surge, para o narrador, a possibilidade de ter seu amor concretizado; na quarta e última noite de seus encontros, a jovem decepcionada, e já a par dos sentimentos de nosso herói, traça planos para viver ao lado dele, mas, em uma última reviravolta, o homem amado reaparece à Nástienka, a propõe em casamento e apaga a chama esperançosa do nosso infeliz narrador. Ao final, já sem o brilho que progressivamente cintilara em seus últimos dias, o protagonista volta a desenhar seu futuro com o matiz negro da desilusão, seus anos tediosos e solitários voltariam a atormentá-lo, contudo, para ele o mais importante era a felicidade de Nástienka, sua tristeza não poderia incomodar àquela que lhe oferecera seus únicos momentos de júbilo; ao envelhecer teria ao menos uma boa recordação.

“Noites Brancas” é uma obra peculiar dentro da vasta carreira de Dostoiévski; com elementos que se aproximam do romantismo, já abandonado pela maior parte dos escritores de meados do século XIX, esta novela surge, ao primeiro olhar, como algo distante do universo realista criado pelo célebre prosador russo; a idealização do amor, a paixão platônica e o final trágico junto a atmosfera sombria e inebriante que exala toda a narrativa dá a ela uma opulência matizada por uma gama de tons escuros e cinzentos. Ficar indiferente à estória, ou sorrir diante do sofrimento supostamente desimportante do narrador é um apanágio de seres álgidos, ou então de insensíveis que nunca experimentaram a solidão; dizer que a novela é uma paródia da literatura romântica, como vários críticos já disseram, significa fechar os olhos perante o potencial trágico do enredo. Esta obra, ao mostrar que diante da principal angústia humana todo o resto é insignificante, aproxima-se muito do existencialismo filosófico, aliás, vários livros do escritor russo carregam um imenso arcabouço psicológico. Afirmar nossa existência é tarefa árdua, pois, ao deixar que o fluxo temporal transcorra livremente, a sensação de não ter vivido se eleva a níveis insuportáveis; precisamos nos impor, não vivemos fechados em nosso íntimo: a vida precisa ser conquistada.

A atividade da leitura galvaniza as reflexões; quando lemos algo que dialoga diretamente com nossa própria condição, desnudando aspectos camuflados de uma personalidade que fingimos esconder, o impacto é brutal. Os minutos que sucedem o ato de fechar o livro parecem eternos, a sensação assemelha-se ao afogamento, a falta de ar exige cuidado, pois nosso estado entorpecido pode provocar reações destemperadas; tudo que fazemos movidos pela irracionalidade é mais duradouro. Ao escrever sobre qualquer coisa, temos que assumir o risco da exposição, pois chega um momento que é inevitável manter-se circunspecto; e digo mais, quem quiser permanecer misterioso, evite escrever, este é o processo comunicativo com o maior número de obstáculos, e desviar de todos exige talento sobre-humano.

Avaliação: 9,0/10
FG

Comentários

  1. Surpreende ao ponto do "tum,tum,tum" do seu coração não ser o suficiente para expressar tamanha genialidade.

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