Ao passar os olhos pelas minhas resenhas literárias anteriores,
percebi que todas elas foram muito pessoais; utilizei a primeira
pessoa em boa parte do desenvolvimento dos meus comentários, dando,
inclusive, preferência às sensações íntimas que tive com a
leitura em detrimento do enredo ou à qualquer outro tipo de análise
objetiva. Eu poderia chamar esta peculiar característica de estilo,
mas, confesso, trata-se, na verdade, de grande inabilidade textual;
negligenciar a impessoalidade é um recurso ingênuo que reflete uma
pureza destituída de malícia, porque, aos olhos de quem escreve,
destrinchar um enxame de subjetivas emoções pode parecer
extremamente atraente; as palavras, neste contexto, ganham vida,
reverberam em um vale montanhoso de intimidade, geram ressonância
nas paredes infinitas do próprio âmago; no entanto, para os
leitores, tais impressões são insípidas, não há motivos para se
informar sobre os processos de leitura de indivíduos desconhecidos;
lágrimas que escorrem junto a uma atmosfera de assombro, o enfado
pútrido causado por páginas mal escritas, o sorriso de uma cena
hilária, ou a prostração diante de algo grandioso, são frases
que, salvo raras exceções, devem ser evitadas, pois elas não
comunicam nada de relevante ao leitor, a não ser nos casos em que
estes compartilhem das mesmas experiências do resenhista. É esta
ressalva que anestesia a dor de meu fracasso; quando escrevo já
conheço meus leitores, eles são vários, múltiplas facetas de um
mesmo indivíduo, a mais legítima fusão do Eu com os outros.
Imbuído de um espírito prático, desenvolvo meu próprio sustento,
meus textos são ferramentas construídas pelas mesmas mãos que
afagam minhas faces lânguidas; a solidão, a intensificação de uma
personalidade taciturna, e os sonhos progressivamente diluídos com o
tempo, são elementos instigadores não só de minha escrita, mas,
sobretudo, do meu Eu. Este, ao tentar se afirmar como ser que existe,
mas sendo incapaz de se impor perante os outros, cria um universo
fantástico, habitado por sombras que discursam entre elas, se
exasperam, brigam aos tapas, inventam emoções fugazes ao imaginar
que o nada guarda um complexo de relações humanas; contudo, este
Eu, ao abrir os olhos à realidade, percebe que nada criou, nada
viveu e nada fez, foi apenas um sujeito preso em si mesmo que,
impossibilitado de compartilhar emoções, deixou de existir. Para a
velha máxima socialista do “sozinho não somos nada”, lanço
melancólicas risadas, tentando transformá-las em histéricas
gargalhadas, naquele tipo de alegria asquerosa que, antes de aviltar
o outro, humilha a si próprio.
Feito o desabafo, posso iniciar este novo texto. Para os que já
leram a novela, fica evidente minha identificação instantânea com
o personagem principal e narrador da estória, um recluso sonhador
que vivia grandes conflitos internos, mas que na realidade concreta
tinha muito pouco a contar. Mesmo morando a oito anos em São
Petersburgo, nosso herói não possuía quase nenhuma relação,
passeava, pelas avenidas largas da metrópole europeia, solitário e
taciturno; anônimo, sentia uma intensa necessidade de se relacionar,
precisava conhecer pessoas, se libertar de sua prisão interior, sair
do universo dos sonhos para encontrar a chave do mundo real. O
narrador em momento algum é nomeado, este detalhe da obra
potencializa a própria caracterização do protagonista, um sujeito
que existia sem viver ou vivia sem existir, era um nada, um aborto
que misteriosamente chegou à vida.
Em uma noite de verão, caminhando alegremente próximo ao rio
Nievá, o narrador conhece a tristonha donzela Nástienka, jovem que
durante todas as noites ficava sobre a balaustrada do canal,
esperando seu antigo amado. Para nosso herói, conhecer tenra
senhorita era um passo gigantesco de socialização, o início de um
percurso que o retiraria de seu onírico mundo das sombras para
realocá-lo à materialidade da vida, era sua chance de ser, existir.
Junto a esta expectativa surge, como era presumível, o amor; a jovem
delicadamente encantadora, sendo o molde da sua esperança renascida,
o deixa inebriado; tudo nela é belo, a ingenuidade, o
sofrimento e seu espírito de criança abandonada. Com o coração
inflamado de paixão, o solitário narrador repreende seus
sentimentos pela jovem, a amizade que nasce entre os dois em seus
efêmeros encontros cria, entre eles, laços de cooperação, e sem
vislumbrar qualquer futuro romântico ao lado de Nástienka, nosso
herói decide ajudá-la a reencontrar seu homem amado.
Todo o relacionamento dos jovens protagonistas desta novela se
resume a quatro espectrais noites brancas. O verão petersburguês
dava ao período noturno um aspecto fantasmagórico, a névoa oriunda
do sol que, nesta época do ano, não se punha completamente, criava
uma atmosfera de delírio, como se a realidade se misturasse à imaginação.
Para o narrador, Nástienka representava o seu existir para além do
imaterial; ele, refletindo sobre sua própria condição, conclui
que, se nada mais vivesse, apenas as noites brancas à beira do Nievá
e ao lado de sua apaixonante donzela seriam suficientes para
resignar-se com todo o resto, pois as inefáveis lembranças desses
encontros o encorajaria a viver novamente seus dias solitários. No
entanto, diante do insucesso de Nástienka em reencontrar sua antiga
paixão, surge, para o narrador, a possibilidade de ter seu amor
concretizado; na quarta e última noite de seus encontros, a jovem
decepcionada, e já a par dos sentimentos de nosso herói, traça
planos para viver ao lado dele, mas, em uma última reviravolta, o
homem amado reaparece à Nástienka, a propõe em casamento e apaga a
chama esperançosa do nosso infeliz narrador. Ao final, já sem o
brilho que progressivamente cintilara em seus últimos dias, o
protagonista volta a desenhar seu futuro com o matiz negro da
desilusão, seus anos tediosos e solitários voltariam a
atormentá-lo, contudo, para ele o mais importante era a felicidade
de Nástienka, sua tristeza não poderia incomodar àquela que lhe
oferecera seus únicos momentos de júbilo; ao envelhecer teria ao
menos uma boa recordação.
“Noites Brancas” é uma obra peculiar dentro da vasta carreira
de Dostoiévski; com elementos que se aproximam do romantismo, já
abandonado pela maior parte dos escritores de meados do século XIX,
esta novela surge, ao primeiro olhar, como algo distante do universo
realista criado pelo célebre prosador russo; a idealização do
amor, a paixão platônica e o final trágico junto a atmosfera
sombria e inebriante que exala toda a narrativa dá a ela uma
opulência matizada por uma gama de tons escuros e cinzentos.
Ficar indiferente à estória, ou sorrir diante do sofrimento
supostamente desimportante do narrador é um apanágio de seres
álgidos, ou então de insensíveis que nunca experimentaram a
solidão; dizer que a novela é uma paródia da literatura romântica,
como vários críticos já disseram, significa fechar os olhos
perante o potencial trágico do enredo. Esta obra, ao mostrar que
diante da principal angústia humana todo o resto é insignificante,
aproxima-se muito do existencialismo filosófico, aliás, vários
livros do escritor russo carregam um imenso arcabouço psicológico.
Afirmar nossa existência é tarefa árdua, pois, ao deixar que o
fluxo temporal transcorra livremente, a sensação de não ter vivido
se eleva a níveis insuportáveis; precisamos nos impor, não vivemos
fechados em nosso íntimo: a vida precisa ser conquistada.
A atividade da leitura galvaniza as reflexões; quando lemos algo
que dialoga diretamente com nossa própria condição, desnudando
aspectos camuflados de uma personalidade que fingimos esconder, o
impacto é brutal. Os minutos que sucedem o ato de fechar o livro
parecem eternos, a sensação assemelha-se ao afogamento, a falta de
ar exige cuidado, pois nosso estado entorpecido pode provocar reações
destemperadas; tudo que fazemos movidos pela irracionalidade é mais
duradouro. Ao escrever sobre qualquer coisa, temos que assumir o
risco da exposição, pois chega um momento que é inevitável
manter-se circunspecto; e digo mais, quem quiser permanecer misterioso, evite escrever, este é o processo comunicativo com o maior número
de obstáculos, e desviar de todos exige talento sobre-humano.
Avaliação: 9,0/10
FG
Surpreende ao ponto do "tum,tum,tum" do seu coração não ser o suficiente para expressar tamanha genialidade.
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