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O Idiota - Fiódor Dostoiévski




Finalmente terminei a leitura deste gigantesco romance; foram quase três semanas na companhia do príncipe Míchkin, e após as setecentas páginas do livro me sinto aliviado e exausto, afinal se tivesse que resumir a obra com apenas uma palavra, escolheria, sem sombra de dúvida, “desgastante” ou qualquer outro sinônimo que denota prostração. Durante este tempo, tive muitos momentos agradáveis junto aos inúmeros personagens do romance, não obstante os prolongados períodos em que pensei, sequiosamente, na possibilidade de abandonar a leitura. Este, provavelmente, será o texto mais complicado que irei escrever, pois até agora tenho dúvidas se gostei ou não da obra. Muitos capítulos chatíssimos eram acompanhados de outros que beiravam a genialidade; esquematicamente diria que o início do livro é interessante, o meio tedioso, e o final excelente; ponderar estas três sensações será minha tarefa nos próximos parágrafos.

A obra conta a estória do príncipe Míchkin, homem de qualidades sobre humanas. Extremamente altruísta, sempre se colocava abaixo de seus semelhantes; sua compreensão ilimitada, que tentava dar contornos dignificantes às atitudes mais perniciosas; seu desprendimento a qualquer ranço individualista; e, sobretudo, seu indelével amor e comiseração pelo próximo, fizeram dele, aos olhos da sociedade, um bondoso porém patético idiota. Inspirado em Jesus Cristo, Míchkin foi delicadamente criado por Dostoiévski para ser uma antítese do indivíduo burguês, aquele que amava as aparências, o dinheiro, e que utilizava-se das relações sociais unicamente para lograr conquistas espúrias e egoístas. Se o protagonista da trama parece estar em um plano idealizado, que dificilmente encontra paralelo no mundo real, é porque as intenções do autor, ao criar este original personagem, estavam ligadas não a um puro realismo fotográfico, mas na tentativa de dar uma resposta à sociedade capitalista que aos poucos destruía os valores cristãos da solidariedade e da coletividade, sem precisar defender ideias niilistas e socialistas, que aliás discordava com veemência. A bondade e a abnegação do príncipe são tão intensamente provocativas que, as vezes, nós leitores achamos, assim como os personagens da trama, que ele é um parvo bobalhão; estes pontuais pensamentos refletem imprudente propensão em conformar nossas ideias de mundo ao individualismo burguês; tendemos, mesmo nos dias de hoje, a desprezar sacrifícios desprovidos de quaisquer objetivos personalíssimos.

A estória começa com a chegada do príncipe Míchkin a São Petersburgo. Na viagem conhece Rogójin, homem rude porém herdeiro de vasta fortuna, travando, instantaneamente, amizade com ele; muito embora, no transcorrer da trama, estabeleça-se, entre os dois, intensa rivalidade. Já no primeiro capítulo, somos informados da epilepsia do príncipe, que voltava à Rússia depois de anos de tratamento no clima agradável da Suíça (para os russos o gélido país da Europa Central não faz tanto frio). Sem conhecer ninguém na nova cidade, nosso herói procura seus únicos parentes ainda vivos que residiam na capital russa; os Iepántchin, compostos pelo chefe familiar o general Ivan Fiódorovitch, sua esposa Lisavieta Prokófievna, e suas filhas Alieksandra, Adelaida e a caçula Aglaia. Esta última, importantíssima no desenvolvimento das imbricadas relações amorosas envolvendo o benévolo protagonista, se apaixonará confusamente pela bondade do príncipe, participando, de forma ativa, das grandes reviravoltas do enredo. Mulher de grande beleza, integrante da alta sociedade, e pertencente de família prestigiada, Aglaia era tratada como uma joia inigualável; admirada por todos, encanta Michkin; no entanto outra pessoa colocar-se-ia entre os dois, a estonteante mulher de “vida fácil” Nastácia Filíppovna. Na verdade, a suposta meretriz tenta unir Míchkin e Aglaia; casal, considerado por muitos, como inviável, em razão das tolices desmedidas de nosso herói; contudo, já no final do romance, Nastácia decide assumir seu relacionamento com o príncipe, os dois marcam a data do casamento dias depois da família Iepántchin ter finalmente concordado com o noivado da caçula com o parvo altruísta. Sem resistir a qualquer pedido o príncipe se vê em uma situação delicada, não poderia abandonar Nastácia, tendo em vista a condição dela de humilhada e ofendida, mulher que por circunstâncias contingenciais é obrigada a trilhar um caminho fora dos padrões aceitáveis socialmente; no entanto, seu compromisso com Aglaia não poderia ser desfeito. Míchkin, dividido pela compaixão e pelo amor, opta em resguardar aquela que mais necessitaria do seu apoio; apaixonado por ambas as mulheres, nosso herói, na comissura de duas realidades díspares, escolhe a opção menos iníqua, super valorizando os axiomas da dignidade e do humanismo. Mas, apesar de tudo, outra surpresa é reservada para as últimas páginas do romance; Rogójin, já citado acima e obcecado por Nastácia, irá, novamente, embaralhar tudo que parecia estar se sedimentando. Não contarei maiores detalhes do final da obra, para não estragar a leitura dos que por ventura embarcarem nas intermináveis páginas do livro. (Eu ainda não entendo por que insistir em escrever para um público abstrato se eu sou praticamente o único que acessa meu próprio blog?)

É presumível que um livro volumoso como “O Idiota” tenha muitos personagens, e que alguns despertem mais interesse do que outros; portanto, abordarei superficialmente algumas subtramas da estória, apenas como estratégia de escrita, ou seja, com a nítida intenção de refletir sobre assuntos, ao meu ver, mais curiosos e significativos. Um dos coadjuvantes que mais me envolveu foi Hippolit; rapaz jovem e tuberculoso, não tinha grandes esperanças na vida, pois sua morte, devido à doença, não tardaria; portanto, sem grandes objetivos sempre se apresentava, aos seus amigos, com um discurso inflamado pela tristeza e pelo pessimismo. Uma das cenas mais marcantes do livro é a tentativa de suicídio do jovem taciturno, após ler uma extensa carta de despedida na presença de inúmeros companheiros e colegas, Hippolit dispara um revólver contra sua testa; a arma falha, deixando-o, após este fracasso, ainda mais aviltado e enojado em relação a sua própria persona. Na carta de despedida é possível perceber as mudanças de ânimo que direcionam e amoldam contingencialmente a escrita do rapaz, lembranças desagradáveis transformam o tom sereno e conciliador em algo dissonante e desesperado, outros sentimentos como a inveja e a vergonha são desvelados de forma hermética e embaralhada. Hippolit, sentindo-se incapaz de camuflar desejos ignóbeis, tenta, engazopando seu próprio íntimo, ministrar, em seus processos comunicativos, doses de mentiras e meias verdades; ao transmitir às vezes ironia, e outras vezes opulência, mascara suas franquezas, sem, no entanto, esconder as imperfeições que desqualificam seu próprio discurso. Esta carta me inspirou a escrever o post anterior, o estouvado conto que relata as despedidas de um ímpio suicida. Assim como na obra de Dostoiévski, meu medonho texto foi construído tendo em vista o estado de espírito do narrador; austero no início, a comunicação vai se transformando, aos poucos, em algo poético, zombeteiro e irônico; no fim, completamente alcoolizado, o narrador não consegue mais esconder sua ojeriza social, revelando suas pérfidas emoções ao chorar palavras úmidas de sofrimento.

Outro momento marcante ocorreu no final do romance, em uma reunião comemorativa realizada na casa dos Iepántchin. Durante a festa de apresentação do príncipe à sociedade de “escol”, promovida pela família de Aglaia, Míchkin comporta-se estranhamente, mostrando-se pouco zeloso com suas palavras e atitudes. Este imprudente comportamento, visto, por muitos, como ofensivo e inaceitável, contribui para o fracasso da noite. Se durante a festa havia alguma pretensão do general Ivan Fiódorovitch em apresentar o príncipe como seu futuro genro, os fatos inusitados, que desencadearam um ataque epilético no parvo protagonista, aniquilariam qualquer chance. Acanhado no início das festividades, aos poucos Míchkin, motivado pelas arengas discursivas, vai se exaltando e expondo suas ideias. Pela originalidade transcreverei uma das falas mais interessantes, lúcidas e verdadeiras do nosso herói.

...nós somos ridículos, levianos, cheios de maus hábitos, sentimos tédio, não sabemos olhar, não sabemos compreender, ora, todos nós somos assim, nós todos, e tanto os senhores quanto eu, quanto eles! Porque os senhores não vão ficar ofendidos pelo fato de eu estar lhes dizendo isto na cara, dizendo que somos ridículos! E sendo assim, por acaso os senhores não são material? Sabem, a meu ver, ser ridículo é às vezes até bom, até melhor: é mais fácil perdoar uns aos outros, é mais fácil fazer as pazes; não se vai compreender tudo de uma vez, não se vai começar diretamente pela perfeição! Para atingir a perfeição é preciso primeiro não compreender muita coisa! E se compreendemos muito rapidamente vai ver que não compreendemos bem”

Após o sincero colóquio muitos motejaram do príncipe, estridentes gargalhadas foram ouvidas pelo salão. A forma simples e verdadeira com que o discurso foi pronunciado causou espanto e repugnância a alguns, outros ficaram extremamente ofendidos, pois não é a todo momento que grandes aristocratas são chamados, de forma crua , nítida e a mesmo tempo humana, de homens ridículos. O curioso é que ao se incluir no grupo daqueles supostamente aviltados por ele mesmo, Míchkin transforma a injúria em crítica, diluindo a película malévola que a recobria anteriormente. Até em suas ofensas o príncipe é delicadamente humano. Além disso, descontextualizando a frase proferida, não há como discordar do perspicaz bobalhão; saber demais às vezes atrapalha, o misterioso sempre é mais atraente, pois por trás de qualquer sentimento, atitude ou ideia explícita haverá, com muita frequência, uma gama secundária de sentimentos, atitudes ou ideias implícitas; e estas terão, não raras vezes, o condão de modificar todas as situações. Concordo com o príncipe: ser ridículo é bom, pois, ao não compreender muitas coisas, estaremos mais próximos da compreensão.

Apesar das qualidades da obra, o livro, aos meus olhos, é bastante irregular; sem contar que a excessiva bondade do príncipe muitas vezes me irritava. Eu até cheguei a lembrar do “Poema em Linha Reta” do Fernando Pessoa que foi, dias atrás, postado neste blog; nele, inclusive, encontramos uma estrofe bastante sugestiva: “Ó príncipes meus irmão;/Arre estou farto de semi-deuses!/ Onde é que há gente no mundo?” . Enfim, estou feliz por ter lido mais um livro deste autor genial, agora me sinto preparado para apreciar a maior obra do escritor e quiçá do universo. Que venha “Os Irmãos Karamázov”.

Avaliação: 6,0/10
FG     

Comentários

  1. Não é mais o único! Bom texto, parabéns.

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    1. Obrigado, é sempre bom receber elogios; um abraço e volte quando quiser.

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