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O Penitente - Isaac Bashevis Singer




“O Penitente” é o segundo livro de Singer que tive o prazer de ler; ao escolher a obra, dois fatores foram importantes; o primeiro foi que “Inimigos: Uma História de Amor”, romance do autor apreciado a poucas semanas atrás, me marcou profundamente, toda a dor, o pessimismo e a desesperança em relação ao futuro da humanidade, encontrado nas reflexões, atitudes e pensamentos do personagem principal, escancaravam o modo crítico e provocativo que o escritor polaco insistentemente tentava transmitir aos seus leitores, as nuanças da vida privada do quarteto amoroso tratado na obra ditavam a dimensão do fracasso das relações humanas, cheias de vícios, idiossincrasias e insignificância; para Singer a evolução para a barbárie não só era inevitável como natural, para ele o mundo era degradante porque o indivíduo, em suas mínimas atitudes, conseguia desviar o caminho de todas as coisas em direção a pútridos atalhos, seja simulando atitudes ou escondendo a verdade; antes de fracassar, diria Singer, sempre destruímos qualquer chance de sucesso. O outro motivo que me levou a ler “O Penitente” foi seu sucinto prefácio, nele o escritor prometia dar voz a um personagem com ideias díspares das suas, um judeu que abandona a vida mundana para se dedicar com afinco aos dogmas religiosos; eu, como qualquer pessoa curiosa, perguntava-me como seria possível escrever algo totalmente contrário às nossas próprias opiniões; ao final da leitura, no entanto, percebi as verdadeiras intenções de Singer; o livro não valoriza o desapego material do universo religioso retratado, nem tampouco apresenta um viés alternativo para a vida; não somos incutidos a concordar com o personagem título da novela, a finalidade da obra é modesta, apenas critica a sociedade pós segunda guerra e toda a falta de sentido de nossa existência. Através de Joseph Shapiro, o religioso que conta a história de sua conversão, Singer consegue o espaço necessário para expor sua visão, nada auspiciosas, a respeito da sociedade moderna.

Como dito, o livro segue a trajetória de Joseph Shapiro, de sua vida “mundana” até sua decisão em adaptar-se ao estilo ortodoxo e dogmático dos judeus tradicionais. O personagem, após a descoberta das traições, quase simultâneas, de sua mulher e de sua amante, decepcionado com a estrutura mentirosa dos falsos sentimentos, atitudes e relações, decide largar a esposa e abdicar de sua rentável empresa; viaja a Israel com a intenção de desprender-se dos prazeres espúrios e efêmeros do mundo moderno, voltando-se, completamente, para a religiosidade judaica; passa a estudar as escrituras sagradas e as tradições de seu povo. Joseph, ao perceber que era um ser descartável e que tudo que vivia era ilegítimo, compreende que a felicidade só poderia ser conquistada em um ambiente imune à perversão e aos insidiosos prazeres da vida material; ao escolher a fé ele renovaria as esperanças em relação ao futuro, pois, ao ser fiel a Deus, encontraria a paz de espírito. Mesmo se esta divindade fosse uma ideia falsa ou apenas mais um ídolo criado pela a imaginação humana, ao menos este Deus hebraico daria, na visão de Joseph, sentido à existência; para ele quanto mais simples a vida mais coerente e etéreo é o sentimento que nos proporciona a vontade de viver.

Refletindo sobre sua vida passada, o penitente relembra suas angústias frente à exploração do ridículo e da comédia degradante; os livros, os filmes, as peças de teatro e todo o tipo de manifestação artística captavam, perfidamente, o cômico diante da violência e da miséria; os grandes personagens da literatura eram indivíduos cheios de fraquezas e emoções execráveis; a cultura valorizava a ruína, e o expectador, mesmo contemplando o podre e sádico, aplaudia, com entusiamo, as formas abjetas descritas pelos artistas. Em passagem interessante, Shapiro comenta sua angústia e mal estar perante o entusiasmo e o enlevo que suas antigas parceiras sentiam ao consumir estes produtos culturais:

Somente agora,quando lhe falo, compreendo quanto sofrimento esta arte me causou. Para apreciá-la você precisa ter o coração de um assassino. Ela é completamente sádica, abjeta e cruel. Muitas vezes vi Célia e Liza rindo de cenas que teriam evocado lágrimas. O herói passava por tortura e agonia e isto era imaginado para ser divertido. Há uma expressão, 'humor macabro', e este é o humor do homem moderno. Ele ri do infortúnio alheio. Quando uma jovem saudável engana um marido velho e doente, isto é supostamente cômico. Todos os heróis da literatura mundana têm sido libertinos e malfeitores. Ana Karenina, Madame Bovary, Raskolnikov e Taras Bulda são os típicos heróis e heroínas da literatura. A Ilíada e A Odisseia de Homero, A Divina Comédia de Dante, o Fausto de Goethe e daí para baixo até o lixo destinado a agradar vagabundos e prostitutas de rua estão cheios de crueldade e depravação. Toda a arte mundana não é nada além de mal e degradação. Ao longo das gerações, os escritores têm glorificado o morticínio e a devassidão e têm todas as espécies de nomes para isto – romantismo, realismo, naturalismo, Nova Onda e assim por diante.”

Este comentário áspero reflete, como qualquer um pode supor, o desespero que a vida terrena pode causar a um recém-convertido ao dogmático mundo religioso, no entanto, mesmo que alguns digam que tais observações não sejam fruto de uma mente sadia, fica evidente, na exasperação discursiva de Shapiro, que algo incomoda nossa existência, e se seu pensamento parecer tendenciosamente frustrante, qualquer outro tipo de reflexão, independente do autor comunicativo, também será, pois não há ninguém isento das regras que condicionam o nosso comportamento e modo de vida. Se venerar “ídolos” é apanágio de seres loucos, todos nós somos insanos, não havendo, portanto, nenhuma mente saudável que nos diga a verdade. Seja seguindo regras religiosas, do consumo, do capital, da moda, de grupos específicos ou de tradições tribais não há como abdicar do controle social; sempre seguiremos regras, a liberdade, destarte, é, latu senso, ilusória*. Se os burgueses criticam os costumes milenares e imutáveis de algumas culturas, da mesma forma, muitos poderão não entender as frenéticas mudanças de uma sociedade que sobrevive do efêmero e da inconstância; em ambos os casos há a crença em um “ídolo”, que pode ser Deus, a felicidade, a verdade, o poder ou uma mistura destes elementos; não suportamos o diferente, ele sempre será ridículo e muitas vezes insuportavelmente tolo, o outro sempre estará errado, talvez aí resida o ponto central de toda a angústia humana; porque no fundo, mesmo inseridos em culturas e contextos históricos iguais, teremos algo que nos diferencie. Contrastes culturais gritantes são combatidos com frases lacônicas: “que bizarro”; “que tosco”; ”que atraso”; “não dá pra entender”; “selvagens!”; “haha... pobres coitados”. Contudo, o diferente porém próximo, mesmo estando errado, aos olhos de reflexões sinceras ou mentirosas, é racionalmente invencível, pois não sabemos explicar ou entender estas diferenças; a perfeição estará sempre do nosso lado, pois, como dita o bom senso, só pensamos o que julgamos correto, ao mudar de opinião mudamos nosso valor verdade, adaptando nossa antiga perfeição a uma nova. A incapacidade de justificar este suposto e subjetivo valor verdade é que gera os tormentos ou, como alguns preferem, a famosa e nauseante angústia existencial. Os personagens de Singer parecem conviver com estes suplícios, Shapiro, por exemplo, não suportando mais sua antiga vida, cria novas soluções para sua existência, apegando-se a outros valores; ao se afastar do mundo material, incrustados de problemas, entrega-se a vida religiosa, liberta seu espírito da angústia, pois encontra, na fé judaica, novas verdades, um novo “ídolo” que guiará sua vida. No fundo, todos nós de vez em quando precisamos, para apartar as mazelas, nos refugiar em algo diferente.

Parte interessante desta novela acontece em suas últimas páginas, Shapiro ao reencontrar Pricilla, mulher liberal que se vangloriava por ter uma mente “sexualmente” aberta, já convertido às práticas da ortodoxia judaica, conversa com ela, censurando as críticas e a incompreensão da moça em relação aos seus novos hábitos religiosos, eis parte do esclarecedor diálogo:

“- Por que servir algum ídolo, afinal? - Priscilla perguntou – Não sirvo a ninguém.
- Sim você serve. Levou anos para aprender línguas. Você e sua espécie desperdiçam suas vidas em prazeres que são afinal nenhum prazer. Sua espécie submete-se a operações para diminuir os narizes. Você empreende uma guerra desesperada contra o envelhecimento. Muitas pessoas como você perderam suas vidas em nome do comunismo, do nazismo ou de algum outro 'ismo'. Todo lema oco, toda teoria tola exige suas vítimas e nunca a falta de voluntários para fazer o sacrifício. Todas as prisões e hospitais estão cheios de pessoas que se sacrificaram por uns poucos dólares, por uma mulher, por um jogo arriscado, por uma corrida de cavalo, por vingança, por drogas e sabe lá o diabo por que mais. Toda nova invenção exige incontáveis novas vítimas. O automóvel já matou milhões de pessoas. O avião também é um anjo da morte. O álcool mata milhões de outros. Milhares e milhares morrem em abortos. Incontáveis homens sofreram, morreram e continuam a sofrer de doenças venéreas. O 'ídolo' que quero servir é um ídolo de vida e lealdade. Ele não exige nenhuma vítima. Não é um Moloch. Tudo que ele exige é que não construamos nossa felicidade sobre o infortúnio do outro.”

A fala de Shapiro parece sintetizar toda a crítica de Singer em relação a sociedade moderna, no entanto, ao contrário de seu personagem, o autor polonês não via na religião um remédio para as incertezas da vida; compreendia o poder hipnótico que ela, a religião, poderia oferecer, mas a absolvição interna não seria suficiente, segundo o premiado escritor, para retirar o caráter ignóbil da existência coletiva; o mundo continuaria sem solução.  

Avaliação: 8,0/10
FG

Obs: Nesta parte de meu texto usei, de propósito, regras de linguagem de textos jurídicos, apenas como uma brincadeirinha interna. 

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