Até o final do século XIX, antes do advento da sociedade do
consumo, havia certa coincidência entre obras de elevado valor
cultural e as mais populares. O público, com raríssimas exceções,
tendia a apreciar produtos de forte enlevo sensitivo; obras que hoje
são grandes clássicos da arte tiveram, no passado, estrondosos
sucessos não só perante a aristocracia ou a burguesia enriquecida,
mas também nas classes menos abastadas. A obra de Mozart, por
exemplo, era conhecida, conjuntamente, nos grandes salões e palácios
imperiais e também nas feiras urbanas, oficinas de artesãos e nas
macilentas tavernas das grandes capitais europeias. O popular e o
erudito se misturavam. É claro que muitas criações foram
negligenciadas em seu tempo, recebendo reconhecimento artístico
apenas, no futuro, pelas vindouras gerações. No texto anterior
citei o exemplo de Van Gogh, outros tantos, assim como pintor
holandês, só foram descobertos depois de mortos; Franz Kafka, o
genial escritor tcheco de “A Metamorfose” e “O Processo”,
teve sua obra publicada postumamente; Lima Barreto, que já teve um
dos seus romances comentados neste blog, é o exemplo nacional de
desprezo artístico em vida; o maior dramaturgo de todos os tempos
William Shakespeare é outro icônico exemplo; e por fim, apenas como
uma última ilustração, temos o polêmico Marquês de Sade,
escritor bastante conhecido por seus escritos altamente depravados e
de péssimo gosto para os conservadores do século XVIII, sádico até
no nome (afinal foi ele que inspirou a criação da palavra), era
considerado, em sua época, uma anomalia artística; hoje, no
entanto, sua obra é admirada por muitos. Não obstante os exemplos
acima, quase todas as obras que outrora se popularizaram
instantaneamente mantiveram irretocáveis seus elevados status;
portanto, antes da mercantilização da arte pelo sistema capitalista
moderno, nem tudo que era bom agradava o público, mas quase tudo que
agradava era bom.
Das conclusões tiradas na primeira parte deste texto, descobrimos
que gostar de algumas obras genuinamente boas, desprezando outras
tantas que possuem o mesmo rótulo, sem, entretanto, deixar de
admirar culposamente alguns produtos universalmente ruins, é a mais
legítima depuração do gosto. Bom gosto, portanto, é eleger como
favoritas criações de qualidade artística díspares; quando
ouvimos com o mesmo deleite as sinfonias de Schubert ou o rock
disfônico do Radiohead não estamos sendo incôngruos, pelo
contrário, é saudável diversificar nossas escolhas culturais.
Muitos dirão, após estas primeiras explanações: então, no
passado, quando o gosto se identificava apenas às obras de grande
relevo artístico, não existia bom gosto. Os que pensam dessa forma
não compreenderam minhas observações, na verdade o critério
encontrado para qualificar as preferências é melhor adaptável as
gerações passadas, ainda não influenciadas pela comercialização
da cultura. Elas, como já analisado, tendiam a desprezar criações
incrivelmente belas, mas, como nos adverte o bom senso, estas obras
esquecidas tinham, embora em reduzido número, apreciadores fiéis.
Por sua vez, mesmo não sendo populares, às parvas realizações
possuíam seu admiradores; a má qualidade sempre foi a regra, sempre
existiu e existirá obras ruins em maior quantidade do que as boas, é
por isso que os amantes de determinada tolice estética eram poucos;
mas, não se esqueçam, muitos gostavam de produtos ruins, e cada
obra ruim tinha um pequeno número de devotos admiradores. Para
resumir e deixar claro minhas conclusões anteriores, as obras
populares tinham este status porque eram boas, outras realizações
esteticamente superiores, por motivos diversos (incompatibilidade
cultural, excessiva originalidade ou um desalinhamento temporal),
foram marginalizadas e esquecidas em suas respectivas épocas; em
contrapartida, os desajustados produtos culturais não se
popularizavam por possuírem irrelevantes atrativos estéticos, não
obstante terem um reduzido, porém fiel, número de simpatizantes. Hoje
este fenômeno ainda ocorre, temos as tribos dos fanáticos por metal
hardcore, os amantes do cinema exploitation e de seus diversos
subgêneros e também os aficionados por literatura alternativa – e
aí encontramos os mangás orientais, e as pulp fiction americanas. O
problema da modernidade é que, devido a pressões mercadológicas,
muitos produtos de irrisória qualidade artística são forçosamente
popularizados, e, o que é pior, outras obras, sublimes culturalmente
e com grande potencial de sensibilizar o público, são, pelas mesmas
forças de capital que impulsionam o medíocre, impedidas de alcançar
o sucesso. Por este motivo temos a falsa ideia de que o popular
sempre será ruim.
Se no passado os consumidores popularizavam as obras, hoje são os
conglomerados do poder econômico que ditam as regras do sucesso, e
como encontramos em maior quantidade produções de baixa qualidade,
é mais fácil, aos patrocinadores, investir no vulgar e ordinário.
Se antes os indivíduos gostavam do popular (bom) e tinham uma
culposa admiração pelo burlesco (quase sempre ruim); em nossos dias
não é diferente, no entanto, o popular provavelmente é ruim e na
esfera do burlesco encontramos de tudo, da obra mais escrota à mais
genial; ou seja, a nossa geração está culturalmente perdida, não
sabemos o que é bom, muitas vezes confundimos a estranheza com a
qualidade, e vários que se alto proclamam cult negam,
obstinadamente, o popular, achando que desta forma encontrarão um
espaço salubre de preferências: doce ilusão. E para piorar tudo,
veem surgindo novos grupos econômicos com fortes interesses em
explorar os canais culturais alternativos, isto, infelizmente, macera
ainda mais nossos processos de escolha artística, nos forçando a
encontrar um viés independente, desvinculado às macroestrutura de
poder.
Antigamente ter bom gosto era fácil, se admirássemos o popular
estaríamos próximos das boas escolhas estéticas, hoje, contudo,
devido ao arrefecimento qualitativo das obras acessíveis ao grande
público, a excelência nas preferências sensitivas é privilegio
para poucos sortudos, aqueles que de olhos vendados conseguem
escolher, entre suas favoritas, algumas obras de alto relevo
artístico. É claro que, ao falar das dificuldades de se nortear no
espaço cultural da atualidade, me refiro apenas às obras
contemporâneas; provavelmente, usando a literatura como exemplo, ao
escolher os grandes clássicos para ler, e podemos citar vários:
Dostoiévski, Tolstói, Gogol, Maiakóvski e Gorki - apenas para
ficar nos russos, será difícil errar; todavia, se pretendemos ler
os contemporâneos, quais nossos parâmetros para efetuar escolhas?
Vamos pelos populares Augusto Cury e Paulo Coelho, ou encaramos as
absconsas veredas de autores desconhecidos? A alternativa é o risco,
e a probabilidade de encontrar quimeras horrendas é gigantesca.
Então, fica um conselho: arrisque-se pouco, apenas o necessário,
fique com os clássicos. No entanto, como viver só de passado? O
moderno é uma exigência, pois, por mais universais que sejam obras
pretéritas, precisamos nos acomodar ao contemporâneo, apenas ele
nos oferece uma identificação instantânea; os artistas, como
qualquer outra pessoa, estão intimamente relacionados ao seu tempo;
as angústias, os medos, a náusea e toda espécie de emoção humana
física, mesmo coexistindo em todas as épocas, têm, em cada locus
temporal, uma névoa de peculiaridades; chega um momento que
inebriar-se com a fumaça sentimental contemporânea é uma obrigação
existencial. Se nos identificamos com o desamparo de Raskólnikov,
personagem de Crime e Castigo, é porque o romance rompeu as
barreiras do tempo, mas a Rússia do século XIX está muito
distante, é preciso mais, um plus que só encontraremos ao arriscar,
dando uma chance aos autores que, assim como nós, navegam
entorpecidos pelos oceanos insípidos do nosso multifário terceiro
milênio.
Os produtos culturais alternativos, quando à margem do poder
econômico, oferecem entretenimento a um grupo restrito de estranhos
sequazes; aquelas famosas tribos, já superficialmente comentadas à
cima, que compartilham um acachapante amor por obras fora do
convencional. Se a regra deste seleto mercado é a obscuridade, as
vezes, de tempos em tempos, ocorre, por fatores bem localizados, a
popularização de alguns destes gêneros, que, por tal motivo,
descaracterizam-se. Os slasher movies, por exemplo, que outrora tinham um reduzido número de
admiradores, eram porcamente produzidos com precários orçamentos;
no entanto, no final dos anos oitenta, este gênero cinematográfico
virou febre, muito foi investido, e o resultado foi a
descaracterização destes filmes; antigos fãs se revoltaram após a
produção de pérolas como a série Pânico e, mais recentemente, o
famigerado Jogos Mortais. O curioso, e neste ponto provavelmente
serei xingado pelos saudosistas do gênero, é que não houve
diminuição da qualidade, em alguns casos, com mais dinheiro, os
filmes eram até melhores, contudo, ao modificar a essência dos
antigos slasher movies, produtores, ávidos pelo lucro fácil,
desrespeitaram o mau gosto específico de vários fãs, e eu me
incluo entre eles. Alguns loucos poderão dizer que os primeiros
filmes deste filão cinematográfico não eram ruins, tinham um
delicado cuidado com os enquadramentos, os movimentos de câmera e
com a estrutura cênica. Infelizmente terei de discordar dos que
pensam desta forma, com exceção do genial Halloween de John
Carpenter, todos os outros filmes são tolices deliciosas.
Bem, venho tentando esclarecer que gostar de imbecis excentricidades
não é motivo de vergonha, pelo contrário, é necessário um
pouquinho de besteira para, de vez em quando, relaxar. Quem só lê
os grandes clássicos, ou assiste, apenas, o neorrealismo italiano e
a novele vague francesa, está longe de ter um depurado gosto
artístico; não é necessário se entreter com qualquer bobagem, mas
também, quem não se incomoda com nada do universo pseudo cultural,
tem, à semelhança dos pedantes “intelectuais de alta
sensibilidade”, graves problemas de gosto. O ideal é admirar em
doses controladas o bom e o ruim.
Se este texto foi escrito apenas para justificar meu gosto por
imbecilidades como a música “My Sharona” do The Knacks, as
canções juvenis e depressivas do Radiohead, os romances de tribunal
de John Grisham, o humor demente de “Two and Half Men”; ou,
então, para dizer que a melhor coisa que Peter Jackson fez não foi
Senhor dos Anéis, mas o escatológico puta trash “Fome Animal”;
bem, estou satisfeito, a menos a mim eu enganei. Para os que, assim
como eu, conseguem apreciar obras tão díspares em termos
qualitativos; parabéns, vocês têm meu certificado, são vulgares e
sensíveis ao mesmo tempo.
Com esta segunda parte do texto “Bom Gosto Artístico”, tentei
ser menos abstrato, não sei se consegui, muitas dúvidas e
imprecisões pairam sobre as frases e insistentes perguntas feitas ao
longo do desenvolvimento de minhas ideias. Provavelmente, depois de
algum tempo, um mês quem sabe, escreverei uma terceira parte,
tentando solucionar os mistérios não respondidos. O próximo
texto, assim como tudo que eu escrevo, obedecerá meu estado de
espírito da ocasião de seu preparo; o estilo mais informativo, a
crônica enganosa ou o hermético fluxo de consciência, tão
marcantes nos meus mecanismos linguísticos, podem ou não
compartilhar um mesmo espaço textual, tudo depende das
circunstâncias, são elas que pré determinam nossas escolhas.
FG
Abaixo o link do vídeo da música "My Sharona"
Fome Animal cara! Lembro quando você teve uma fase que só assistia slash movies e eu ficava me perguntando como um cara com tanto conhecimento em cinema poderia gostar daquilo e ainda ficava insistindo pra eu assistir... mas como você disse: tudo depende das circunstâncias, do estado de espírito. Concordo, mas sinceramente, particularmente não consigo assistir filmes desse estilo! Um abração!
ResponderExcluirRealmente este é um gosto bem peculiar, rir diante de vísceras vomitadas ou crânios decepados, é um privilégio de um grupo seleto de loucos. No entanto, cada um de nós carrega seu pedacinho de loucura, não é? Não me lembro se você chegou a assistir Fome Animal, se assistiu terá de concordar que o filme é hilário, tirando a nojeira dos litros de massa de tomate usados pra fazer o filme e outras cenas asquerosas, tem muita coisa engraçada ali. Não dá pra não gargalhar quando um padre luta kung fu no cemitério e depois engravida uma noviça zumbi, isto é bizarramente cômico.
ExcluirValeu de novo por mais um comentário, e por ter perdido seu tempo lendo as bobagens que eu escrevo.
Fala brother. Infelizmente tenho pouco tempo para ler seus textos (a noite não tenho acesso à net). Quem vai gostar de discutir esses assuntos contigo é nosso primo Roz. Apesar de ser pouco erudito ele é muito louco. Manda um email pra ele com o link do blog. roizmax@hotmail.com
ResponderExcluirBem, presumo que comentário acima seja do meu irmão.
ExcluirIrei avisar ao Roz a respeito do blog, quem sabe outra pessoa se anime a comentar as baboseiras escritas por mim. Valeu Curuja, e sempre que tiver um tempinho acesse o blog.
Pô, tinha feito um comentário, nem vi que não foi publicado... Mas o que tinha escrito antes era mais ou menos assim: " Gostaria de manifestar minha total concordância com suas palavras. Adorei esse texto. Bom de ler, bem escrito..."...
ResponderExcluirBem, tô adorando ler e comentar... Show!! Brother.
Obrigado pela solidariedade, mas, por favor, não exagere.
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