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Devaneio II - Rachmaninov




Isto é um sonho, ou apenas um delírio juvenil? Existe liberdade no sofrimento? Fechem meus olhos...

Estou preso, absorvido ao efêmero; tento achar uma saída, mas não tenho escolha, a morte me espreita em infindáveis labirintos. Após praticar o suicídio espiritual, esperava encontrar a chave da bem aventurança... doce ilusão; a cada dia sinto-me mais perdido, quando viro a direita, vozes estridentes e asquerosas me advertem sobre o insucesso de minhas decisões; então, mudo de ideia, opto pela esquerda, não encontro nada; o vácuo de meus pensamentos são contornados por palpites inúteis, frágeis e muitas vezes enganosos. Ao andar em todas as direções percebo que a sinceridade excessiva é apenas o prelúdio da mentira. Não quero escutar os outros; mas, por ser completamente parvo, ao invés de tapar os ouvidos, eu fecho os olhos; não vejo o óbvio, e, o pior, sou forçado a ouvir bobagens. Por isto venho tentando fortificar milha ilha interior; já sofri muitos ataques, fieis soldados foram mortos, uma das torres de meu castelo foi superficialmente atingida, e meu navio particular foi destruído. Hoje, construo muros impenetráveis, feitos de materiais sólidos, quase intransponíveis. Desenvolvi, ao misturar minhas lágrimas amargas às excrescência fétidas de meu despreparo cognitivo, uma fórmula mágica de durabilidade infinita; portanto, quando tiver terminado minha grandiosa obra, quando minha ilha estiver completamente circundada de desespero, dor e solidão, me sentirei seguro - pronto para me acomodar ao vazio - resignado e feliz, dentro de um ambiente de tristeza absoluta. Para aprender a resistir a dor, nada melhor do que conviver eternamente com ela. Ao eternizá-la, retiramos seu sentido; o alívio, o bem-estar e a felicidade são os grandes culpados do insuportável desespero; ao assumir a tristeza como uma condição existencial, e não como um estado de espírito passageiro, estaremos preparados para respirar o nauseante aroma da insignificância humana. Não somos nada, caminhamos para o nada, desejamos, sequiosamente, o nada, no entanto, sentimos tudo; é esta incongruência que nos arremessa aos misteriosos infortúnios da vida. Nossa condição é de subespécie, pois, frente às emoções, a racionalidade pouco significa.

Volto a sonhar ou penso sonhando?

Estou preso, não posso me mover, perdi minhas pernas em longas e bárbaras batalhas, e hoje padeço em solidão eterna. Em meus últimos instantes de vida gostaria apenas de uma derradeira lembrança, mas não consigo rememorar meu passado idílico. Deliro, meu peito pega fogo, minhas mãos tremem, sinto lágrimas ácidas ferirem meu semblante vulgar e não posso suportar meu sangue de cavaleiro fracassado.

Meu Deus, por quê? Diga Senhor, onde está minha nobreza? Por favor, não me rebaixe, aceite-me ao seu lado, tudo o que fiz foi movido por uma irracionalidade amorosa, não quis matá-la, senhor – a culpa não foi minha, tentei salvá-la, fiz de tudo para voltar no tempo.

Volte doce donzela, não me deixe morrer sem contemplar sua bela imagem; me perdoe, eu não quis macular sua inefável face. Lembra-te das doces cerejeiras, do cintilar adocicado dos fins de primavera, dos nossos passeios fortuitos ao redor das montanhas de pedra. Recorda-te de nosso primeiro olhar – naquele início de tarde outonal, fiquei apaixonado pelos seus delicados olhos esverdeados – de nosso primeiro diálogo – cumprimentei-te, elogiando suas nobres maneiras – e do nosso primeiro beijo – sublime, inebriante e espectral; como fui feliz ao seu lado; amei-te tanto, amo-te tanto; mas você se foi. Não quis feri-la, tudo não passou de um grande desentendimento, minha reação foi um mero impulso animalesco, quero que me perdoe; não posso morrer sem seu perdão. Diga, eu posso ouvir pelo vento. Diga! Feiticeira ardilosa, te imploro: me liberte do inferno. Por favor, diga.

Não me deixem sozinho, estou sofrendo, tenho sede, sinto frio, estou morrendo, me ajudem, tragam-me Parsifal, onde está Parsifal? Você, infeliz, me mate, fure meus olhos, esfole minhas lânguidas faces, escalpele meu coro cabeludo, castre minha dignidade, opere meu amor próprio, mas não me deixe visualizar minha torpeza. Tire, demônio, este espelho daqui; vá embora, deixe-me em paz, ou mate-me de uma vez. Onde está Parsifal?

Cegueira, náusea, vômito, fezes, pútridas e asquerosas fezes - meu corpo clama por você, feiticeira pagã, no inferno voltarei a rir de sua mediocridade, amarei sua vertente mais insidiosamente vil, recolherei rosas de angústia e baixeza para oferendar a ti, perversa e imunda. Estou morto? Responda, estou morto? Fale algo, estou morto? Ou será que eu nunca existi? Onde está Parsifal? Diga: eu existo? Parsifal, onde está? Ele existe? Eu existo? Onde estou?

Em um instante acordo; percebo que meus pensamentos transformaram-se em sonhos, e meus sonhos em pensamentos, vivo estranhamente às avessas, e talvez por isso seja um cavaleiro fracassado; pois, nas diligências de um novo passado, morro a cada segundo. Choro por todos os poros, e não vejo nada a minha frente; tudo é um imenso deserto, todos se foram, estou sozinho, orgulhosamente sozinho. Meu jardim secou, e agora, ao envelhecer, sem me abstrair dos sentimentos infantis, enxergo em preto e branco, grito colorido e canto pelos ouvidos. Desculpe Rachmaninov, não fui feito para a arte da comunicação, sofro horrores insignificantes, mas não consigo traduzi-los em palavras; minhas deficiências intelectuais são tão intensas quanto as morais, ao desrespeitar a vida desrespeito igualmente a linguagem. Mas meu choro, apesar de ralo, é vermelho sangue, e o canto de meus ouvidos é integralmente inteiro, pois de pedaços não conseguiria sobreviver aos seus passageiros e musicais encantos. Rachmaninov me ensine a crescer, sou infantil em demasia, e nem sei escrever.

Hoje sobrevivo vomitando frases, no entanto, não alcanço a mais próxima e irrelevante ideia, tudo que faço é espúrio e de mau gosto; falo de amor, apenas minto; falo da dor, digito bobagens; solidão, não consigo entendê-la; tédio, sinto na pele, mas não sei bordá-lo. Tenho que admitir meu fracasso, pois mesmo cavalgando sobre íngremes montanhas não me é permitido voltar ao passado; matei minha amada, todavia quero reencontrá-la, ver seu corpo em decomposição, seus ossos expostos, sentir o aroma pútrido dos meus próprios desejos. Volto a delirar e percebo que a solidão é tão magnânima. Estou em uma ilha. Na minha ilha.

Sinto o vento soprar, cantar canções plácidas que enlevam meus sentimentos, cochichar aos meus ouvidos segredos imemoriais, lamber minha boca burilando o doce e nefando aroma de um pernicioso afrodisíaco. Estou sorrindo aos pés do mar distante, caminhando lentamente em direção aos agnocastos, pois quero frear meus desejos, me refestelar abaixo da sombra do sol escaldante, para poder derreter, mesmo sentindo frio, minha álgida alma. Farei a fusão entre a chama que consome o pus negro de minhas entranhas com a chuva que lava minha subjetividade motejante. Agora, acabo de comer um fruto ácido, estou sorvendo lágrimas, elas reavivam minha memória, e nela percebo que meu castelo não está tão longe; quem sabe lá eu reencontre minha amada defunta. Ela está viva, Parsifal, meu fiel amigo, me contou. Mas onde está Parsifal? Onde eu estou? Na minha ilha, em meu castelo, sozinho. Parsifal matou minha amada e eu matei Parsifal. Fui trancafiado em um calabouço nojento, lá os ratos são os meus novos companheiros; converso com todos eles, e venho, ao longo do tempo, criando imensa simpatia por estes lôbregos animaizinhos. Acordei novamente, meus pensamentos estão se aglutinando frente aos meus ouvidos, talvez a música tenha parado, mas não posso terminar assim, devo recomeçar.

Sonho acordado... Estou PRESO, trancafiado em meus próprios pensamentos; Vivo? Ou Morto?

Quero amadurecer, cuspir minha ingenuidade, sobreviver com rugas toscas, pútridas, porém respeitosas; hoje, no entanto, devoro minha face de menino, retiro cada centímetro de tecido epidérmico, para redescobrir minha mediocridade; pois tenho a indubitável certeza que meus pensamentos são perecíveis, estragam com o tempo. Peço as poucas almas que sorriem a minha volta para embarcar no primeiro navio; minha ilha interior não tem mais espaço, sinto-me sufocado, qualquer presença me asfixia, insulta minha integridade. Aos demônios, apenas agradeço; sem o medo não existiria. Agora irei gritar, espernear gargalhadas letárgicas de sono leniente, sorver lágrimas de felicidade ressentida, e esta será minha solução final, meu primeiro e verdadeiro desejo, o romance derradeiro das inconsequentes instruções recebidas em vida. Não suporto o peso em meus ombros; tento caminhar, mas é impossível, a paralisia emocional trava meus músculos, meus ossos parecem desfarinhar, e a cada nova gotícula de suor percebo minha inteligência indo embora. É insuportável, sou a cada instante ferido por dores desproporcionais, estou perdido; meus obstáculos existenciais, apesar de mínimos, são intransponíveis; padeço, pois ainda não me acostumei a meu corpo frágil. Quero ser forte, tenho que ser forte; devo resistir, enfrentar meu fracasso de cabeça erguida. Sim, irei vencer - todos os espírito malignos serão assassinados, torturados em locais públicos, e o mundo contemplará minha glória, meu portentoso renascimento. Esta será uma imensa revanche, a invisibilidade, que outrora consumia meu ser, ficará esquecida, serei reverenciado como rei, muitas aplaudirão minhas conquistas, o universo se tornará pequeno para os meus feitos. Não! Pra que a aprovação alheia? Prefiro a solidão, o esquecimento; minha dimensão interior é muito mais complexa e fascinante do que nossa realidade anódina. Vão embora, me deixem em paz. Fantasmas, vampiros medonhos, monstros sugadores de almas, não preciso de vocês, não preciso de ninguém, sou autossuficiente, posso viver isolado, trancafiado, e até mesmo amordaçado; pois não tenho qualquer necessidade de comunicação, sou meu melhor ouvinte.

Acho que me matei, assassinei todos que estavam dentro de mim. Estou vazio, já não posso sonhar. Onde ela está? Ela existe, ou não passa de um sonho?

Parsifal a matou,
Eu matei Parsifal
Acordei
Parsifal a matou?
Eu matei Parsifal?
Delirei
Ela me matou
Parsifal me matou
Eu me matei
Ela matou Parsifal
Parsifal se matou
Parsifal sou eu
Sonhei?  

FG

Obs: estas postagens denominadas "Devaneio" foram produto do acaso; pensava apenas em postar os vídeos com as belas canções, no entanto, durante o demorado upload fiquei ouvindo as músicas e escrevendo delírios pouco racionais. Não tinha a intenção de postá-los, pois eles possuem significados que eu próprio tenho dificuldades de desvendar, mas, gostei da ideia; e como são textos "fáceis" de escrever, fruto de pensamentos inconsequentes, repetirei com frequência bobagens semelhantes. Ao menos as músicas são sublimes.  

Comentários

  1. Seus devaneios arrepiaram minha alma. A intensidade das idéias são chocantes e assustam com os conflitos existenciais do autor. A desesperança e o pedido de ajuda. O que falta a esse ser tão frágil? A socialização e a aceitação das pessoas são uma necessidade humana. A desilusão aamorosa nos isola. E inevitável não se identificar. E Persival? seu conflito? E a amada ? Muito imaginativo o texto. Parabéns.

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