Pular para o conteúdo principal

Diários de Dois Amantes (part. III)



Tomás (26, abril, 2015) - manhã - domingo

Acordei com um ligeiro mal-estar. Ontem exagerei um pouco na bebida, talvez por isso esteja sentindo tamanho desânimo. Ao meu lado, Carol dorme; o que estaria sonhando? Se pudesse invadiria seus sonhos e me manteria apenas como espectador, um voyer que analisa os segredos alheios, pois tenho medo de viver entre mentiras, de não saber os rumos certos do meu relacionamento.

Dessa forma, inerte, com a respiração tranquila e o semblante sereno, Carol não parece enxovalhar-me. Em verdade, não vejo Carol, vejo um rosto, um rosto simétrico, um rosto delicado, alvo, um rosto perfeito; ao lado desse rosto consigo exultar meu espírito, ao lado desse rosto tranquilo, sereno, inerte, simétrico, delicado, belo não tenho medo de amar. Mas quando suas pálpebras despertam sou exortado ao medo; meu amor tão nobre e colorido fica lôbrego. Tenho medo, muito medo. 


Tomás (27, abril, 2015) - tarde - segunda

Ontem, após o futebol, briguei com Carol. Achei um bilhete estranhíssimo na calça dela e exasperei-me em desconfianças. Ela tentou me agredir e não teve o menor pudor em desconsiderar o que eu estava sentido. Acha que meu ciúme é desproporcional, absurdo; acha que estou doente, que a reprimo e cerceio sua liberdade. Mas naquele bilhete alguém se insinuava pra ela. Hoje, pela manhã, confessou tudo; devia estar arrependida e provavelmente se sentia culpada pelas agressões e pelas acusações infundadas. Disse que no sábado uma mulher, sem motivos aparentes, lhe entregou aquele bilhetinho quando foi ao toalhete do "Circuito". Antes, só havia perguntado se ela tocava algum instrumento e nada mais. Não comentou de imediato para evitar discussões inúteis na frente de seus amigos. Iria me contar tudo quando estivéssemos sozinhos. Acabou esquecendo, afinal aquilo não fazia a menor importância. Talvez ela estivesse falando a verdade, mas, por jactância, não poderia demonstrar compreensão e sugar pra dentro de mim toda aquela atmosfera incômoda. Não obstante o clima tormentoso, fizemos as pazes. 

Domingo, após a briga, encontrei Miguel num boteco perto da casa dele. Contei tudo o que tinha acontecido, falei da fúria de Carol, da sua agressividade e insanidade grotesca; tentei exprimir todos os detalhes, mas, até aquele momento, não sabia sobre a mulher do toalhete e nem sobre a procedência do bilhete. Ficamos especulando as possibilidades. Miguel, com sua meiga disposição a me incutir à chocarrice, sugeriu se tratar de um recado inocente do irmãozinho da Carol; apesar do seu semblante carregado e sorumbático, ele sempre tentava, na medida do possível, transformar o ambiente em algo plácido, tranquilo. Era meu melhor amigo e tinha um talento poético incomparável. Depois de quase um ano morando numa casa de campo, voltou pra cidade; estava terminando de escrever seu primeiro romance. Apesar de nunca ter me aproximado dos seus manuscritos, sei que seu livro é bom, muito bom.

Dormi na casa dele. Pela manhã peguei um livro emprestado, sem ao menos avisar sobre meu empréstimo. Um requintado volume do célebre romance de Thomas Mann, "Os Buddenbrooks". Miguel tinha uma vasta coleção de livros e Mann sempre foi seu escritor predileto. Lembro do dia que, alcoolizado, ficou lendo, em público, uma passagem de "Morte em Veneza", seus olhos verteram em lágrimas e até hoje nossos amigos o consideram um sentimentaloide chorão.


Tomás (27, abril, 2015) - noite - segunda

Carol dorme ao meu lado, como se nada de estranho estivesse acontecendo entre nós dois. Ainda tenho dúvidas sobre minha relação. Ela poderia estar me usando. Ela poderia?


Carolina (28, abril, 2015) - tarde - terça

Hoje depois do almoço cochilei um pouco. Neste intervalo tive tempo de sonhar com o homem grisalho. Dessa vez não estávamos cavalgando, mas dentro de um banheiro. Ele me olhava mantendo uma distância de dois metros. De repente se aproximou e lambeu meus ouvidos. Pude ver nossos reflexos no espelho. Estranhamente, eu não tinha o meu corpo, nem minha aparência. Minha imagem refletida tinha as formas magistrais da mulher morena.    

FG

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Camões vs. Gonçalves Dias - um duelo aos olhos verdes

Redondilha de Camões Menina dos olhos verdes Por que me não vedes? Eles verdes são, E têm por usança Na cor esperança E nas obras não Vossa condição Não é de olhos verdes, Porque me não vedes. Isenção a molhos Que eles dizem terdes, Não são de olhos verdes, Nem de verdes olhos. Sirvo de geolhos, E vós não me credes, Porque me não vedes. Havia de ser, Por que possa vê-los, Que uns olhos tão belos Não se hão de esconder. Mas fazeis-me crer Que já não são verdes, Porque me não vedes. Verdes não o são No que alcanço deles; Verdes são aqueles Que esperança dão. Se na condição Está serem verdes, Por que me não vedes? (poema retirado do livro Lírica Redondilhas e Sonetos de Camões da editora Ediouro) Olhos Verdes de Gonçalves Dias São uns olhos verdes, verdes, Uns olhos de verde-mar, Quando o tempo vai bonança; Uns olhos cor de esperança Uns olhos por que morri; Que, ai de mi! Nem já sei qual

Carta de Despedida

Sentir? Sinta quem lê! Fernando Pessoa Quando alguém ler estas palavras já estarei morto. Não foi por impulso, refleti muito, ao tomar esta decisão; percebi que o melhor não seria viver, mas desistir. Venho, através desta carta, me despedir de algumas pessoas; tenho, antes de tudo, a responsabilidade de amenizar a dor, causada por esta autônoma escolha, que infelizmente afligirá quem não a merece. Cansei de ser covarde, ao menos nesta derradeira atitude assumirei a postura obstinada e corajosa dos homens de fibra; não será por medo e nem por desesperança do futuro que abdicarei da existência, são razões bem mais simplórias que me autorizaram a colocar em prática resoluta solução; na verdade, talvez não exista razão alguma, esta será uma decisão como qualquer outra, e, portanto, será oriunda da mais depurada liberdade de meu espírito. Não quero responsabilizar ninguém, pois apenas eu, sem nenhuma influência exterior, escolhi por um ponto final nesta frase mal escrita

Narrativa Erótica

Um homem cansado fumava seu cigarro refestelado ao sofá, ouvia um pouco de jazz e não pensava em nada; Miles Davis, o inigualável músico americano, preparava seu organismo para uma vindoura noite de prazer. A atmosfera era cálida, desaconselhava as formalidades de qualquer andrajo ou vestimenta; em uma espécie de convite, o calor exortava-o à nudez. Não era belo, tampouco repugnante, tinha alguns atrativos capazes de seduzir mulheres mais liberais, apesar de magro possuía um corpo atlético, bem definido. Três baganas já pendiam sobre o cinzeiro, sua vitrola sibilava o ar com um doce almíscar sonoro de Blue in Green, criando um clima perfeito para possíveis relaxamentos sexuais . D e olhos fechados, aguardava, dentro de uma tranquilidade incomum, ansioso e apoplético; seus movimentos eram delicados, sincronizados, quase poéticos; levava o cigarro à comissura dos lábios, inspirava a fumaça para depois soltá-la, tentando criar figuras mágicas, inebriadas pela falta de pudor. A s