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Projeto. VIII

Acordado, ainda sobre o chão frio, Hernandes começou a ouvir o barulho das sirenes; alguns tiros eram disparados, gritos e os mais diversos tipos de ruídos contaminavam o ambiente. O setor 43 estava sobre ataque. Algo acontecia.

Uma voz foi ouvida pelos auto-falantes. "Permaneçam em casa. Vigilantes em busca". No edifício Z-73 o tumulto era perceptível. Muitos pareciam abandonar o local.

O certo seria fugir. Se fosse uma caça, ele era presa fácil. Não tinha um plano de fuga, sequer imaginou que aquilo aconteceria.

Abriu a porta. Dezenas de corpos, todos recobertos do líquido preto, estavam caídos pelos corredores. A correria era intensa. Na entrada do prédio uma garotinha com olhar em súplica parecia perdida. Hernandes pegou a menina no colo e começou a caminhar pelas ruas repletas de transeuntes e vigilantes. Um deles o parou. Naquele momento suava frio. Acabara de chegar e em instante poderia ser preso. O vigilante escaneou seu rosto, fez o mesmo procedimento com a menina. Perguntou o que ele fazia com a garotinha, e porque não estava em casa. Disse, simulando linguagem rudimentar, que a garota era filha do vizinho; e que este havia passado mal, vomitado negrume; estava levando a menina para o avô. Informou ao vigilante que vários no edifício Z-73 estavam caídos feito mortos, queria saber o que estava acontecendo. Sem receber resposta, foi autorizado a seguir. A garota não emitia palavra.

Foi em direção ao apartamento de Beto. Anteciparia seus planos. Talvez o início da catástrofe tinha começado. Mais cedo ou mais tarde as pessoas iriam morrer, só não esperava acontecimentos tão rápidos, devastadores, sincrônicos. Se fosse verdade, o planejamento ganharia novos contornos.

Lembrou-se da menina. Sem interromper as passadas, tentou conversar. Perguntou se ela falava, a idade e onde estavam os pais. A menina muito assustada, respondeu:

"Falo sim. Você falou pro moço. Meu pai tá caído, não tenho ninguém. Sou Sofia... fiz seis"

Hernandes ficou surpreso. Pruma garota de seis anos até que ela se comunicava melhor do que muitos adultos daquele bairro. Sofia poderia ser um bom pretexto para evitar qualquer tipo de detenção. Perguntou se ela poderia caminhar ao seu lado. Com ele estaria segura. Deram as mãos e foram de encontro a Beto.

Para evitar novos vigilantes, entraram em ruelas e becos. No caminho uma senhora bastante curvada e com poucos cabelos repetia enlouquecida e solitária as mesmas frases: "É o extermínio. Vão cercar o bairro, não vai sobrar ninguém." 

As palavras da anciã despertaram a atenção de Hernandes. Tentou interrogá-la.

"Senhora, o que está acontecendo?"

A velha parecia não ouvir, seus olhos eram brancos, o semblante cheio de rugas.

"Não adianta ser jovem, todos morreremos. Até a menininha. - Disse isso e começou a rir."

"Por favor, diga o que sabe."

"As pastilhas pretas estão contaminadas. Foi tudo planejado. O carregamento que chegou pela manhã tinha cheiro de morte. Mas eu não como pastilhas, prefiro me alimentar de ratos. - As risadas se intensificaram."

"Como assim? Por que fariam isso?"

"O governo vai substituir os trabalhadores por máquinas. São mais eficientes, a manutenção é menos custosa, As máquinas não se importam com a beleza. Sabe menino, quando era nova encantava os homens, mas não gosto de homens, prefiro os ratos.  

A morbidez de risos e gargalhadas começou a assustar Sofia, a menina segurava o choro.

"O que vão fazer com aqueles que não consumiram as pastilhas?"

"Vão levar pros laboratórios, mas eu não vou; prefiro os ratos."

"Quem é a senhora? Como sabe de tudo isso?"

"Eu era muito bonita. Mas não gosto de homens, prefiro os ratos. Eles me contam tudo. Sabe menino, quando eu era jovem e bonita li um poema. Não, eu escrevi um poema, ou pensei um poema. Um poema bonito, um poema jovem, menor que a menininha. - Depois disso começou a cantarolar - Não vai embora. Fique aqui, não vai embora. Sou muito bonita e não vou embora. Se um homem me disser algo, eu não vou embora. Se uma máquina me expulsar, eu não vou embora, não, não, não. Eu sou muito bonita e não vou embora... não... não... não..."

Pegou Sofia novamente no colo, e deixou a velha cantarolando. Ela era uma figura bizarra, mas dentro daquela loucura poderia ter laivos de verdade. Entrou pelos fundos da casa do irmão. Se Beto tivesse consumido as pastilhas pretas naquele dia, a esta hora poderia estar morto. Cheio de angústia queria sepultar o pesadelo. 


***


Quando Adália foi embora, ficou alguns minutos refletindo. A curiosidade despertada pelo envelope era gigante. Seriam verossímeis as respostas que encontraria. E se a mulher tivesse substituído o conteúdo do envelope. Sequioso, o desembrulhou com fúria. Lá dentro tinha dinheiro e uma carta escrita a mão. Reconheceu a letra de Hernandes, não poderia suspeitar mais de possíveis artimanhas. Com cuidado analisaria cada frase e sentença. E se o irmão fosse um androide, o que faria? Enquanto os olhos deslizavam por palavras, sentia o medo crescer. 



FG

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