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Projeto. VII

Hernandes ficou no prostíbulo rememorando o passado. Seis anos atrás viveu tormentos e violências que fizeram o sonho revolucionário adormecer. Agora poderia remendar os erros e construir tudo de novo. Estava diferente, preparado para se livrar de qualquer artimanha. Sempre soube que a grande transformação só viria com o sacrifício de muitos.

Todas as pessoas ao redor, o barulho, o cheiro lastimável, animalesco retratavam os miasmas humanos. Aquilo que estava sobre os olhos não valia uma gota de suor. Salvaria o irmão, os outros pereceriam.

Ele sabia que o mundo não era o mesmo, não resguardava qualquer semelhança com o passado. O amor pela humanidade foi substituído pela sobrevivência; e para resgatar algo que se perdeu, os fantasmas que sobreviviam tinham um destino certo, e nada poderia ser feito. Sua crença num mundo melhor estava mais viva do que nunca. A consciência se despertara e o auge da espécie seria construído por uma nova visão objetiva, por uma linguagem mais sofisticada, por ferramentas e tecnologia. A sociedade sem classes, sem conflitos seria erigida sobre os escombros; a máxima racionalidade destruiria individualismos.

Se não houvessem mais problemas sociais, afetividades mal resolvidas, desmazelos e ignorâncias, o quanto poderíamos desenvolver as ciências, as artes, a filosofia. Quantos poetas, filósofos, eruditos e sábios trabalhariam por prazer, estética, felicidade? 

As perdas eram irrecuperáveis. Em poucos meses, não mais que anos, o efeito mortal da política de alimentos seria anunciado. As pastilhas matariam pouco a pouco todos aqueles que por ignorância se vergaram a elas. Ele não poderia fazer nada, não dava pra voltar, era impossível refazer o ignóbil percurso do tempo. Pobre humanidade, teve que sofrer os maiores achincalhes antes da anunciação. A luta não seria vista por todos, a guerra seria privilégio dos que foram poupados. Um mundo sem classes, sem divisões, sem propriedade, remido dos erros e castigado pelas escolhas erradas. O ser e o universo social seriam um e o outro, regido pelo mesmo código, pela mesma linguagem. As palavras, os saberes, corpos e inspiração pertenceriam a todos. O vício do eu, do homem morreria para dar lugar ao novo, ao paraíso de relações afetivas multidimensionais.

Estes eram pensamentos que passavam pela órbita de Hernandes. Tais reflexões o fizeram lembrar das últimas palavras de Miguel, o irmão caçula. Antes de morrer disse em tom solene: "Eu te perdoo por tudo. Sei que no seu peito pulsa um amor que nunca irei sentir. Por favor, não se perca, e procure entender que dentro do humano existem múltiplas dimensões". Aquela frase estava sempre guardada, lhe causava remorso, despertava arcanos, devaneios. 

Miguel sempre fora muito sensível; uma alma pura, um achado que evaporou. Dentre todos que morreram, ele foi a maior perda. Hernandes se culpava pela tragédia, e aquilo doía, o sufocava. Sempre quis desabafar com alguém, mas era mais fácil expurgar os pecado do mundo, do que revelar seus segredos.

Quantas dimensões gostaria de achar para recompor o caçula, recompor suas palavras? Em qual labirinto iria se perder na busca pelo impossível? Preservava seus sonhos de infância. Na memória cada ente querido lhe indicava caminhos a trilhar, mesmo Beto com toda a displicência e vadiagem. Aliás, a esta altura, ele deveria estar lendo o envelope, suas confissões. Tinha receios de ser mal compreendido, as vozes inimigas eram muitas. E se Beto já estivesse imiscuído por outros sentimentos? Os dissidentes vagavam por lugares desconhecidos, em vielas, ao redor da cidade; poderiam persuadir a inocência rebelde de qualquer um. Mas ele não poderia permitir que a luta fracassasse de novo. Se todos percebessem a importância do projeto, a necessidade de lutarem juntos venceriam o exército de inimigos.

Ainda perdido em reflexões, aguardava. Ao lado dele, um homem muito gordo e grande começou a delirar. Em segundos lavas de negrume escorreu pelo nariz do estranho. Tombado no chão, contorcia-se como um animal ferido. Em volta do homem, clientes e prostitutas continuavam a orgia de sons e desatinos. Quando o líquido preto se espalhou e todos notaram o incidente, houve gritos, empurrões. O tumulto se galvanizou em xingamentos e lamúrios, e sem que houvesse motivos plausíveis vários começaram a se agredir. Hernandes permaneceu imóvel. Pensou em deixar o local antes que a vigilância chegasse. Não dava mais para aguardar o misterioso homem de bigodes. Aquela conversa seria adiada.      

Foi para o edifício Z-73. Chegou no quarto vazio, deitou no chão, fechou os olhos e dormiu.

Naquela noite teve sonhos tenebrosos, memórias reconstituídas por fantasmas internos. Pôde ver Miguel numa cabana esgueirada por abismos. O irmão pintava lindo quadro. Ele era talentoso, tinha traços suaves e sabia combinar as cores. A pintura ia ganhando forma. Um anjo de asas negras olhava para um cenário destruído, tentava reconstruir tudo; mas ao mudar as peças criava tormentas maiores. De repente, Miguel, que desenhava a obra, foi tragado por ela, passou a fazer parte das ruínas. O anjo ao ver Miguel tentou modificá-lo, melhorar o que considerava imperfeito. As tentativas frustraram-se, o menino pintor acabou morrendo. Se antes vivia o sonho como espectador, após a morte do caçula, percebeu que ele, Hernandes, era o anjo; que aquelas asas negras pendiam do seu próprio corpo. Acordou assustado, encostou nas cicatrizes e passou o resto da noite sem ter coragem de fechar os olhos novamente.

FG

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