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Projeto. IX

Caro Beto,

Há seis anos atrás, quando o governo foi destituído e os conservadores tomaram o poder, eu e os outros membros dos replicantes ficamos encurralados. Você deve lembrar da tarde de agosto que apareci em casa com o rosto sangrando. Mamãe ficou assustada. Depois que Miguel morreu ela não aguentaria a perda de outro filho. Naquele dia recolhi minhas anotações e fui embora; vocês nunca mais me viram. O sangue do meu rosto era do Quirino. Pela manhã nossa base foi cercada. Eu e Quirino conseguimos fugir, os outros foram presos. Na fuga alvejaram meu amigo com cinco tiros no rosto; por sorte escapei. Estava tão transtornado que quando cheguei em casa não dei explicações. Com a antiga caminhonete de papai deixei a cidade. Passei a noite na fazenda; queimei todos os papeis do grupo e segui sozinho para o sul; cruzei a fronteira e pedi abrigo. Mas as coisas mudaram rápido; o golpe foi se espalhando por todos os países, fiquei acossado. Naquela altura todas as cidades já estavam cercadas, era impossível transpor fronteiras.  Depois de dois anos em fuga fui capturado nos pampas; antes disso vivi sozinho cheio de privações; me alimentava de plantas silvestres e de pequenos animais. Foram anos de aprendizagem e contato com o lado mais singelo da existência humana.

Ainda em terra estrangeira fui submetido a torturas físicas e psicológicas. Me falavam sobre você e mamãe. Soube o que fizeram com ela, me mostraram o vídeo, foi uma dor terrível. Eles alimentaram minha fúria; queriam informações sobre os outros membros, mas eu não sabia de nada. Depois de três meses me esqueceram; fiquei preso numa solitária por quase um ano. Em seguida me trouxeram de volta pra cá. No sul, a quinhentas milhas daqui, construíram uma base secreta; lá eles fazem experimentos genéticos, usam cobaias humanas. Passei por dezenas de operações, tentaram mudar meu organismo; nunca soube ao certo o que pretendiam. Parte da igreja estava colaborando. Nesse tempo conheci Tito, um padre formado em neurobiologia. Ele não concordava com os absurdos praticado pelos outros cientistas. Lá de dentro ele tentou ajudar os prisioneiros. Alguns que se submeteram aos experimentos não resistiram, vários morreram. Tito me falava sobre o caos que imperava nas cidades. Soube da junta militar, da escassez de alimentos e da invenção das pastilhas. Recebia informações suas, não muitas, mas o suficiente para me tranquilizar e entristecer. 

No ano passado interromperam as pesquisa; todos os prisioneiros que ainda estavam vivos seriam mortos. Tito conseguiu salvar três. Eu estava entre eles. Verônica, uma anarquista, e Agenor, reles servente de pedreiro, também escaparam. Tito nos deu dinheiro e local para morar. Ficamos na sua propriedade rural, ainda nos pampas; ninguém soube de nada. O padre voltou pra cá, assumiu cadeira na universidade e ministra aulas no departamento de ética e melhoramento genético. Apesar de ter ajudado, ele nunca revelou o teor do que acontecia, no fundo não confiava tanto em nós. Na fazenda tivemos que nos virar. Nós três estávamos sozinhos. Aos poucos o comportamento de Agenor começou a ficar estranho. Certa noite ele me prendeu no quarto e violentou Verônica. Ela acabou morrendo. Quando consegui me libertar e vi o que tinha acontecido, tentei fugir. Agenor me perseguiu. Brigamos. Na luta me livrei dele graças ao canivete que guardava no bolso. Na manhã seguinte Tito esteve na fazenda, relatei o incidente ainda absorto e com pensamentos suicidas. Tito tinha um plano, mas não esperava aquela morbidez. Ele me ajudou, e replanejou tudo. Enterramos Verônica e levamos o corpo de Agenor para as margens do rio. Graças ao contato do padre com experts em informática que trabalhavam na programação do sistema de cadastramento pessoal, conseguimos mudar minha identidade. Me transformei em Agenor. Ficou tudo combinado. Assim que encontrassem o corpo do psicopata, eu viria pra cá. Quando a notícia de minha morte tornou-se oficial já estava preparado para transpor a fiscalização e passar pelos muros. Fui orientado a esperar o anoitecer, mais especificamente às oito horas e vinte três minutos, era o tempo necessário para os experts rearranjarem a ficha pessoal do Agenor para que ele pudesse entrar sem maiores contratempos.  

Tito me contou sobre o plano. O departamento de robótica e bioquímica da universidade passa por uma grande reforma, estão ampliando e construindo novos laboratórios. Eu, na pele de Agenor, começarei a prestar serviços na universidade amanhã. O objetivo é conseguir entrar na sala secreta e roubar os arquivos. O padre acha que por ser um mero servente não irão notar com desconfiança minha presença. Seria a grande chance. 

Ele desconfia que as pastilhas podem ter relação com este espúrio projeto. Talvez eles queiram reprogramar a linguagem das pessoas para transformá-las em máquinas. Os motivos ainda são nebulosos, e não sabemos quem orquestra tais experimentos. Os generais que supostamente governam a cidade são meros fantoches; existem outros encobertos ditando as regras. Se tivéssemos acesso aos arquivos saberíamos as respostas. Sem informação não dá pra mobilizar muita gente, muito embora Tito já tenha reunido um pequeno exército, mas ainda são poucos. 

O padre não pensa como eu pensava. Ele quer restaurar o antigo regime democrático; com transparência e participação popular. Extinguir as pastilhas e direcionar todas as verbas de vigilância para a produção de alimentos orgânicos, com qualidade, vida. No caos que se instalou, voltar no tempo é a única solução. Ajudando o padre poderemos recuperar a memória dos que se foram - de mamãe, Miguel, de nossos amigos - e evitar que outras mortes arbitrárias aconteçam. Talvez seja possível interromper o processo, salvar vidas que se perdem pelo vício e pelo esmorecimento da cognição. 

Você não faz parte do plano, mas Tito irá ajudá-lo. Falei da sua formação. Uma ocupação no departamento de linguagem não seria nada mal. 

Quero que você pare de consumir pastilhas. No envelope tem dinheiro, mude-se do setor 43 e compre alimentos tradicionais.

Amanhã estarei na universidade, começo a trabalhar. Ao final da tarde quero que me encontre no setor 18, ala b, numa casa azul sem número. Tito e outros membros do grupo estarão lá.

Com afeto,

Hernandes.



FG    

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