Certa manhã 4 indivíduos encontraram-se para discutir algo sobre o mérito. O líder, aquele que ocupava a cadeira mais alta da sala de reuniões, quase não falava; apenas perscrutava todos os outros, ora com olhar jocoso, outras vezes insinuando desprezo. Dos outros três, dois se enfrentavam verbalmente minuto a minuto, estavam em lados opostos da sala, e defendiam interesses distintos; o estranho é que argumentavam sobre vida alheia e supostas regras que comprovariam suas versões e verdades. O quarto indivíduo, sempre silente e talvez o menos importante, era, se não fosse seu semblante apreensivo e desesperado, mero elemento figurativo; no entanto, os dois que falavam, se referiam a ele, suas emoções, pensamentos, ideias, atitudes, comportamento, cotidiano; a vida do indivíduo calado e menos importante era analisada nos mínimos detalhes; dos que falavam, um parecia defendê-lo, apontando suas fraquezas e fealdades, o outro o acusava, ressaltando sua astúcia e qualidades.
A discussão rendeu horas, e para que vocês, leitores, tirem suas próprias conclusões, irei transcrever as declarações finais dos dois que falavam, bem como o pronunciamento do líder.
"Vossa Excelência, venerável mestre, supremo em inteligência e sensibilidade, com a devida vênia, todos os respeitos e homenagens, quero lhe apresentar, após toda a minuciosa dialética que teve o desprazer de escutar, a mente, que ao contrário da sua, é vil, asquerosa, perniciosa, ignóbil e delinquente. Me refiro ao indivíduo que ocupa aquela abjeta poltrona" - neste momento fez uma pequena pausa e apontou para o homem calado, antes de continuar - "Ele, ou melhor, isso, quero repetir sem querer exaurir sua paciência, escreveu, na data de 11 de janeiro de 1998, o seguinte bilhete: 'hoje não tenho nada a fazer, vou ficar em casa, ler alguns livros e descansar um pouco'. Sim, excelência, tal heresia, como amplamente debatida nesta reunião, foi escrita por ele." - novamente apontou para o homem calado - "Se quiseres analisar os documentos acostados aos autos, perceberá que minuciosa perícia foi feita, comprovando a autoria destas palavras. Não restam dúvidas que ele" - fez de novo menção ao homem calado - "escreveu de próprio punho o bilhete. A caligrafia da prova número 00245715 confere com a do meliante. O perito cadastrado com código 00864583 foi ouvido em sede preliminar e confirmou não só a prova número 00245715 mas, sobretudo, o procedimento 4473259, elencado pelo dispositivo 66232-7 já confirmado pelas orientações 33458 do colegiado 203, turma 7. Veja bem, vossa excelência, tal matéria já foi objeto de ação confirmatória de implausibilidade, e a corte 1884, por dissonância ilógica, julgou pela implausibilidade do procedimento 4473259, dando provimento aos pedidos e confirmando a legalidade das provas coletadas em dígitos iniciais 002, além disso recepcionaram, através do pleito 19783, o dispositivo 66232-7, o incorporando ao nosso sistema de implausibilidades constitucionais. As provas que lastreiam os autos são bastante claras, e este pérfido e inescrupuloso deve ser condenado. Vale lembrar que em outros julgados as provas de digito 002 foram suficientes para comprovar a autoria e a responsabilidade, sendo que todas elas utilizaram o procedimento 4473259, mesmo antes da corte 1884 confirmar a implausibilidade do procedimento. Então, inestimável líder de sapiência absoluta, peço que vossa excelência julgue totalmente procedente a ação penal 669124578932, condenando isso" - outra vez, em visível atitude de asco, apontou para o homem calado - "a todas as penas elencadas na exordial acusatória"
Após as alegações finais do primeiro homem que falava, foi dada a palavra ao outro.
"Eminente mestre e salvador, espero que tenha se convencido das argumentações defensivas apresentadas ao longo do debate. Quero confirmar minha versão e aclarar a verdade. Concordo com meu nobre colega, meu cliente carece de caráter, mas não porque é ardiloso, dissimulado, inteligente e psicopata, pelo contrário, seus pensamentos são esquálidos, destituídos de força, motivação, desejo; por isso foi coagido a escrever o bilhete. Esta coação desautoriza a aplicação, ao presente caso, do dispositivo 66232-7, não cabendo, dessarte, a adoção do procedimento 4473259, por conseguinte a prova 00245715, que fundamenta a peça acusatória, deve ser desentranhada dos autos. Aliás, é esse o entendimento do colegiado 049 e de boa parte dos escreventes sem ação que, em última instância, balizam nossos conhecimentos constitucionais de implausibilidade. Para reforçar citarei um deles, caso vossa sumidade inclita e magistral me permita" - olhou para o líder e recebeu aprovação - "é do escrevente sem ação Antônio Junqueira Toledo Emanuel Cruz e Souza: 'Em caso de coação, exclui-se a aplicação do dispositivo 66232-7, pois o fato de coagir gera a implausibilidade tácita acobertada por procedimento especial'. Veja excelência, toda a instrução está maculada de ilegalidade, devendo o processo ser extinto sem resolução do mérito; clamo que vossa excelência, guardião da poltrona acolchoada, anule o procedimento 4473259, indeferindo todas as acusações elencadas." - Parou, bebeu um pouco d'água e retomou o fôlego. - "Mas, se não concordares com a tese da coação, peço que julgue prescrita a conduta de meu cliente, pois, conforme o dispositivo 12987-4, comportamentos referentes aos formulários 69,70,71 e 72 prescrevem em lapso temporal estipulado em anexo ortongrafário 56, sendo claro que no caso em tela a prescrição já se consumou. - Sem olhar para o homem calado, disse, enfatizando todas as palavras, sua última frase - "Este pobre coitado não pode ser condenado."
Findadas as alegações finais, o juiz se pronunciou.
" Na ação penal 669124578932, Estado Constitucional da Implausibilidade Coletiva versus Acusado 0085467, julgo procedente todos os pedidos da exordial acusatória. Condeno o Acusado 0085467 com base no dispositivo 560 das ordenações 004, à pena disposta em anexo apelatário 33, convalidando toda a instrução 77789 e o procedimento 4473259 adotados. Nego provimento às teses defensivas, já que não ficou comprovado qualquer tipo de coação. Sobre a prescrição, muito embora exista orientações da corte de implausibilidades constitucionais para que sigamos a tabela de anexo ortongrafário 56, prefiro, por não ser uma exigência vinculativa da corte, aplicar o anexo ortongrafário 56-B, em que a conduta não estaria prescrita."
Sem se dirigirem ao homem calado, o líder e os que falavam deixaram a sala de reuniões Aquele, sozinho, permaneceu em sua cadeira. Sem saber o que poderia fazer, esperou alguma instrução. Naqueles minutos, teve medo; afinal, a instrução que aguardava talvez viesse em algum dispositivo, procedimento ou formulário.
FG
Curiosa para saber o contexto do bilhete deixado pelo réu.
ResponderExcluirCuriosa para saber o contexto do bilhete deixado pelo réu.
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