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O Quadro Roubado



Para alguém que se comprometera a parar de fumar e levar uma vida saudável, Tomás não passava de um cretino; já estava no oitavo cigarro e na terceira xícara de café. Escrevia por vezes alucinadamente, mas na maior parte do tempo organizava suas frases em longos intervalos. Tinha sete livros de Paolo Grossi a traduzir, nenhum que merecesse importância, malgrado nutrisse vetusta admiração pelo autor. O amontoado de baboseiras políticas e sociológicas, metodologicamente esquematizadas pelo simpático florentino, incutia-lhe ojeriza. Já não aguentava aportuguesar a expressão “illusione della proprietà”, tampouco se sentia confortável quando seus olhos compreendiam, para além do óbvio, o conteúdo daquelas palavras.

Tudo na escrivaninha, adereços, objetos, fotografias antigas, seus livros e cinzeiro eram seus, e qualquer desejo que comprovasse o contrário mereceria desprezo. Em sua volta a propriedade constituir-se-ia plena, absoluta; não fosse um singelo desenho furtado algumas semanas atrás. A paisagem esboçada no papel de má qualidade era bela, no entanto, não eram as árvores e colinas, matizadas com o mais inocente giz de cera, responsáveis pelo interesse causado pela pequena obra. Foi a porta, portal, o homem encurvado, a senhora triste, ou seja lá o que simbolizava aquele dissonante traço na aquarela, o simulacro artístico perpetrador do seu deleite; a peça ou detalhe era tão obscuro e insinuante que ensejava hipnose. Talvez por isso, não passasse um dia sem que Tomás concentrasse alguns instantes para admirar o objeto furtado. Hipnotizado, custoso seria exigir do reles tradutor uma interpretação não só do desenho, mas, principalmente, do conteúdo do seu ato. Apesar disso, em momentos de lucidez eram comuns reflexões. Para toda mente sã, pensava, a atitude de pegar qualquer coisa, sem o consentimento do dono, é crime. Existem condutas que, apesar de censuráveis, são insignificantes; sendo assim, meu ato, continuava matutando, é, sobre qualquer perspectiva, lícito. Tomás, como veremos no decorrer desta narrativa, estava errado.

O desenho, como já sugerido, era uma bela ilustração. Composta por traços vivos registrava o entardecer de uma pequena colina ornada por gramíneas e portentosas árvores. No centro da gravura, um objeto misterioso figurava em destaque. Cores claras, variando entre branco, amarelo e cinza, sugeriam uma luminosidade autônoma. As formas peculiares desse objeto contrastavam com o restante, poluindo a obra impressionista com sugestividade e ousadia. Sem ser possível identificar sua representação, a cada observador era conferida liberdade interpretativa. Este poder de autonomia causava hipnose, dependência, e, em alguns casos, fúria. Foram estes sintomas que exortaram Tomás ao furto, e também eram eles que o eximia da culpa.

Após horas se dedicando a enfadonha labuta de tradutor, Tomás apercebeu-se angustiado; precisava descansar, espairecer a cabeça para, mais tarde, voltar ao trabalho. Reuniu alguns livros e documentos, além da sua caderneta de anotações, e decidiu ir ao centro da cidade. Antes de sair de casa, abriu a gaveta da escrivaninha com o intento de visualizar, por mais uma vez, o desenho misterioso. Ficou surpreso; por alguma razão desconhecida, o objeto luminoso, que mesclava branco, amarelo e cinza, estava mais claro, ocupando maior espaço no papel; a princípio, não obstante uma ligeira preocupação, aquele evento modificativo não lhe causou grande estranheza.

No centro, após rápida passada em sua cafeteria predileta, resolveu visitar um museu de obras raras; sentiu-se bem, recuperado da fadiga e disposto a voltar ao trabalho. No hall de saída da galeria, sem que notasse qualquer força coercitiva, volveu seus olhos para trás na direção de um quadro em branco. Ficou petrificado, um sentimento lancinante invadiu seu âmago, aquela tela vazia causava-lhe náusea. Negligenciando os motivos do mal súbito, retornou para casa; necessário seria desanuviar suas sensações com alguma bebida quente. Após meio litro de chá, teve, reconduzido pelo senso de responsabilidade, vontade de retomar os afazeres. Traduziu cinqüenta páginas de um obscuro texto de Paolo Grossi. Reconciliando com o velho italiano e consigo mesmo, dormiu.

Na manhã seguinte abriu os jornais, como de praxe, na seção de cultura e lazer. Na página principal do caderno, para sua surpresa e estupefação, a figura da obra em branco convidava os leitores à exposição que visitara no dia anterior. O que significa isso? Quanta bobagem, desrespeito; no fundo a arte é mera falsificação. Perorava Tomás em solilóquios enganosos. Guardou o jornal na cômoda do dormitório para, em seguida, contemplar o vicioso desenho furtado. Não pode ser, devo estar louco; talvez alguém queira me pregar alguma peça. Foram estes os pensamentos do tradutor, quando percebeu que o portal da obra adquirida sub-repticiamente ocupava quase toda a tela – a figura absconsa já não se parecia com qualquer outra coisa. Em desespero, dirigiu-se apressadamente ao museu. Como intuitivamente supunha, lá estava seu desenho com as árvores e colinas perfeitamente contornadas com a mais deletéria técnica impressionista. O objeto centralizado também estava lá, porém seus matizes luminosos converteram-se em álgido azul, como se quisesse transmitir uma depurada energia desertora. Tomás enlouquecia.

Passou o dia fumando e bebendo, a largos tragos, café. Matutou em longo período sobre o alcance da propriedade e a necessidade da posse. Precisava daquele quadro, aquele quadro era seu. Como poderia ficar longe do objeto de desejo? Como o objeto de desejo poderia estar à disposição de olhos inimigos? Intimamente o desenho já era parte constitutiva do seu ser, por este motivo achava-se violado.

Em casa, jogou fora o jornal – naquela altura a tela em branco, que figurava em destaque no caderno de cultura, já reproduzia as árvores, colinas e o objeto misterioso -, pensou em se desfazer do antigo desenho furtado que agora era apenas um papel vazio, mas reconsiderou a ideia; pendurou a folha em branco na parede da sala e voltou ao trabalho.

A noite, após incansável esforço laboral, terminou a tradução dos sete livros de Paolo Grossi. Sentindo-se aliviado, ligou à editora para comunicar o término das traduções e pedir informações sobre os modos de envio. Faria tudo pelo correio e dentro de alguns dias receberia a complementação do valor monetário combinado. Passada a sensação de tranquilidade pelo trabalho feito, entediou-se. Refestelado ao sofá da sala, tentou ligar a TV; estava quebrada. Resignado, adormeceu.

De madrugada, acordou com fortes dores nas costelas; acendeu um cigarro e preparou um café. Ao caminhar para o quarto, inopinadamente estremeceu; o papel em branco, pendurado à parede, estava manchado com a expressão “illusione della proprietà”. Será que alguém invadiu meu apartamento? Talvez seja sonâmbulo, esquizofrênico, ou quem sabe tenho dupla personalidade? Mas esta letra não é minha, parecem traços de giz de cera; não consigo entender, não compreendo, não compreendo... indagava, transtornado, o confuso tradutor. De chofre e ainda em pânico, pegou o isqueiro e ateou fogo no papel. À medida que as chamas se propagavam, Tomás sentia um cálido ar tomar conta de suas entranhas; seu corpo, aparentemente intacto, dilacerava por dentro, era como se ele e o papel fizessem parte de um elemento só. Estava queimando de dentro para fora e nada poderia fazer; seus órgãos sucumbiam, viravam cinzas; sua pele, aos poucos, se enrugava, adquirindo tonalidade escura; e seus pensamentos, em energia incendiária, pendiam irascíveis em consubstanciação.

A luminescência o despertou, ferindo seus olhos. Não estava em casa, a sua volta um ambiente onírico enrijecia seus músculos, impedindo qualquer movimento. Nos braços apertava, sobre o peito, uma tela iluminada que sentia ser sua. Em verdade, ela, tal como as mãos e pernas, parecia fazer parte do seu próprio corpo. Paralisado, observava árvores e gramíneas por toda parte; figuras borradas que representavam meros adereços de uma inefável colina impressionista. Naquele momento compreendeu ser parte da figura furtada.

Após três meses em exposição, o quadro impressionista deixou o museu, voltando para seu antigo dono. Muitos, que ousaram interpretar a estranha figura presente na obra, sugeriram se tratar de um homem iluminado; de seu peito irradiava luz criadora. Seria então o homem substituindo Deus no processo criativo e na elaboração da própria arte. Outros tantos, no entanto, propugnavam ser o quadro uma metáfora sobre a inspiração artística. A figura seria o homem, através de sentimentos e sensações, dando vida a natureza. Anos mais tarde, convidado a opinar sobre o quadro, Paolo Grossi, em seu característico tom irônico, disse que a figura era apenas ilusão, ilusão da propriedade. Ninguém entendeu o florentino e seu comentário foi visto como um imenso deboche.


FG

Comentários

  1. Uma reflexão sobre a arte... Esse texto é genial! O personagem torna-se parte do quadro que admira! Lindo! Gostei mt também da menção sobre a relação do homem e a propriedade!!

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