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CIÚME (part. I)



Sou um sujeito ciumento. Tenho ciúmes de homens, mulheres, jovens, maduros, experientes, idosos; tenho ciúmes de olhares, sussurros, gestos, sorrisos; tenho ciúmes da palavra, linguagem, da poesia; tenho ciúmes do vento, da brisa, do ar abafado, do ambiente claro, escuro, sombrio; tenho ciúmes do belo, da fealdade, do desprezo, escárnio, elogio; tenho ciúmes do eterno, mutável, do instante, do temperamento constante, do tumulto, do torvelinho; tenho ciúmes de pensamentos, desenhos, músicas, baralhos, de amigos; tenho ciúmes do cheiro, do sexo, pelos, cabelos, ombros e ouvidos; tenho ciúmes de batimentos cardíacos, da digestão, respiração, do esôfago, estômago, intestinos; tenho ciúmes do cotidiano, das tarefas, do trabalho e do esforço empreendido; tenho ciúmes da felicidade, da concentração, do sofrimento e do fastio; tenho ciúmes do tic tac do relógio, do nascer do sol, do cantarolar dos passarinhos; tenho ciúmes do barulho do celular, das sobrancelhas que se levantam, da posição das mãos, da postura do corpo, dos olhos que piscam; tenho ciúmes das anotações feitas em escondido, da falta de memória, do recordar demasiadamente excessivo; tenho ciúmes da confiança, do rosto enrubescido, da liberdade, da manipulação, das cobranças, incentivos; tenho ciúmes do ciúme, de indiretas, resignação, conformismo; tenho ciúmes da racionalidade, do sentimentalismo, da ignorância, brutalidade, da raiva, de calafrios; tenho ciúmes dos dentes afiados, das unhas protuberantes, da pele riscada, dos lábios mordidos; tenho ciúme do sarcasmo, piadas, deboches, do falso sotaque e dos encontros arrependidos. Tenho ciúmes, muitos ciúmes; e, por ser um sujeito ciumento, quando vejo as horas passarem, os dias sucumbirem, as semanas irem embora, percebo ter ciúmes do tempo que, por vários momentos, insinua perigos.

Sim, tenho ciúmes do tempo, pois ele não dá trégua, enfraquece a paixão tornando-a insípida. E eu, a confessar imaturidade, compreendo a imperfeição de qualquer sentimento absoluto. Tenho tentado desmistificar a pressão que a dias confrange meu peito; tenho tentado, sem recorrer a violência, esfaquear inimigos; tenho tentado sabotar meu próprio relacionamento a simular todos os desiquilíbrios. Não posso dizer que sou mal sucedido, ao menos, depois de todos os sentimentos poéticos, inefáveis, ásperos e macios, observo meu amor caminhando para outro horizonte, em local que não me permite passagem. Se não amasse, dificilmente flertaria com a loucura; passaria meu tempo em dissertações políticas, artigos sociológicos, ou, quem sabe, desenvolvendo argumentos para o mestrado. São tantas as linhas de conhecimento, tantas horas dedicadas a filosofia, tantos pensamentos, aforismos, que me apego a mediocridade quando, cego de amor, esqueço tudo aquilo que acreditava ser verdade. Mas postura teórica não convive pacificamente com atitudes, e isso, acreditem, não é ruim, pelo contrário; exasperar por amor, ter ciúmes do acontecimento mais corriqueiro, agonizar de saudade mesmo quando ela não deveria existir, querer fundir o próprio corpo com o outro a fim de alcançar a completude nos faz enxergar o quão humanos e imperfeitos somos. Errar é fundamental, temos que errar o tempo todo; quem não erra não sente, é quadrado, robótico, carece de personalidade e não desperta interesse. Por várias vezes senti um desejo louco quando estava em fúria, me apaixonei pelo detalhe mais ordinário e me senti atraído até mesmo pelo desespero; no entanto esta fúria, o detalhe ordinário e o desespero, por mais que fossem erros e desvios de virtude, resguardavam dentro de si e por trás da suposta fraqueza uma força viciante, irracional, sedutora; se não fosse assim seriam apenas erros e o erro por si só não desperta olhares, tampouco insinuam desejo. Apesar do que foi dito, o erro, como qualquer outra coisa da vida, quando repetitivo torna-se chato. A constante fúria decorrente dos mesmos motivos, o detalhe ordinário que se repete sem qualquer originalidade e os desesperos ligados aos mesmos sentimentos, sensações, suspiros, com o tempo, serão apenas erros; não carregarão dentro de si qualquer força viciante, irracional, sedutora; e sem ela a paixão esvanece.

Admitamos, o amor romântico é um sentimento oriundo das qualidades, virtudes, da beleza do espírito, das formas perfeitas, dos movimentos constantes, do respeito, gratidão, encanto, da gentileza, companheirismo; mas a paixão é originária do erro, das várias modalidades de erros que além das fraquezas que lhe são inerentes carregam alguma força hipnotizante; o erro da incompreensão, do desprezo, da fúria, esquecimento, da negação, do paradoxo; o erro da imobilidade, do prazer egoísta, do apego, do exagero, do idealismo. Podemos dizer que o amor é belo e a paixão sublime. Belo porque constante, límpido, luminescente, claro; sublime porque abrupto, disforme, obscuro, sombrio. Tudo que é belo acalenta a alma, faz bem aos sentidos, causa as melhores sensações, fortifica a vida, dá espaço, liberdade; tudo que é sublime agoniza impressões, sufoca, martiriza, compunge pensamentos, enfraquece a essência, aprisiona a personalidade. O dia, o perfume das flores, o marulho das ondas, o despertar do sol, o colorido, a música suave, o riso inocente, o abraço carinhoso de um ente querido são figuras que remetem ao belo; já a noite, o almíscar do pântano, os gritos da tempestade, o matiz obnubilante, ruídos disfônicos, o arrepio de um motejo, e olhares proibidos podem flertar com o sublime. Na vida precisamos da paz, mas não é possível existir à parte do medo; precisamos do esteio que nos dê segurança, mas insonso seria caminhar sem as incertezas e os mistérios que nos cativam; precisamos em doses controladas do belo, sem abdicar do sublime, mesmo se necessário a angústia.

A paixão, por ser sublime, quase sempre é perigosa e incontrolável. Quando estamos apaixonados somos seduzidos pelo erro do outro; o amor, que é o contrário disso - amamos qualidades, belezas -, pode coexistir no mesmo lapso temporal, desde que os erros não desconfigurem as virtudes. No entanto, com o tempo, um acaba preponderando; quando isso acontece, intrigas, crises, e um possível término são consequências possíveis. Os erros nos faz indagar se aquelas virtudes que no passado encantavam ainda existem; perguntamos constantemente se nosso parceiro mudou, perdeu sua essência. O pior é que a insistência nos mesmos erros podem destruir a paixão - é comum um casal ficar apaixonado por pouco tempo - pois eles, os erros, perdem a força motriz que antes seduzia, ficam insípidos, chatos; para reavivar a paixão é preciso novos erros, mas estes podem sepultar de vez as boas sensações do afeto romântico construído; por isso amar mantendo-se apaixonado é tão difícil, exige um exercício hercúleo de equilíbrio. 

Se alguém se apaixona por alguma pessoa devido ao caráter ambíguo que dá azo à hipnose, e ao mesmo tempo passa amá-la pelas qualidades e virtudes que descobriu pelo contato, convívio; com o tempo este erro pode tornar-se desinteressante, aniquilando a paixão; e, dependendo da profundidade e consequências deste mesmo erro, ele pode também desfigurar as virtudes do ente amado, desconstituindo o amor que outrora parecia inviolável. O turista, por exemplo, que assiste uma erupção vulcânica provavelmente se encantará pelo medo e perigo da experiência vivida; no entanto, para um morador do entorno, que é de tempos em tempos obrigado a conviver com o incômodo, a mesma experiência é um grande transtorno. De fato, as forças da natureza são sublimes, mas nem por isso é satisfatório conviver constantemente com elas.

Em meio a tantas divagações me apercebo em um vórtice de situações angustiantes. Sou um sujeito ciumento, amoroso e apaixonado, e o tempo tem sido ignóbil com tudo aquilo que planejava e planejo para o futuro. Sou idealista, romântico; também sou ríspido, orgulhoso, por vezes indiferente. Erro de forma displicente e odeio pensar que serei incapaz de apaixonar a mulher que amo. Seria bobagem recorrer a violência, minha índole de homem honesto sequer oferece as ferramentas para sentir sinceramente tantos absurdos. Confesso, tenho talento, charme; alguns dizem que possuo certa beleza, outros confundem meu senso crítico com inteligência. Mas sou um sujeito ciumento e tudo parece, quando dou ensejo às minhas fraquezas, revirar-se ao avesso. Verônica, a mulher que amo, consegue entender a profundidade, a distância e o comprimento do que vivemos e do que ainda podemos viver, mas também é cheia de sonhos e ainda não mostrei o suficiente para poder fazer parte de todos eles. Admiro seus pés, talvez a parte de seu corpo que ela mais despreza, pois não vê nenhuma utilidade neles; eu, ao contrário, sei que os pés são o equilíbrio, e, ao me sentir desequilibrado, beijo-os na tentativa de compartilhar por alguns momentos o mesmo estado de espírito. Ultimamente tenho falhado, afinal sou um sujeito ciumento, e, como qualquer outro, erro, erro em profusão.

(...)  

Continua

FG

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