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Leituras de Maio


Coração Tão Branco - Javier Marías 



O livro, narrado em primeira pessoa, conta a história de Juan, um tradutor intérprete que labora nos mais importantes eventos internacionais. A personagem abre seu relato descrevendo, com minúcias de detalhes, o suicídio da tia, que à época era casada com seu futuro pai. Esta tragédia familiar, por muito tempo mantida em segredo e longe dos olhos e ouvidos de Juan, persegue o narrador mesmo antes dos fatos se tornarem inteligíveis à sua memória, já que seu pai, homem afável, sedutor e estranhamente misterioso, ostentava a terceira viuvez; e ele, Juan, experimentava as incertezas e inseguranças de seu recente casamento com Luísa. 

O livro apresenta grande requinte técnico, com frases longuíssimas, muitas vezes intermináveis, além de outros recursos extremamente bem trabalhados, como a sobreposição de falas e pensamento, atitudes e reflexões, discurso e suas interpretações.

O título é uma referência a Macbeth, peça de Shakespeare. "O coração tão branco" é uma fala de Lady Macbeth que tentava acalentar seu marido logo após ele ter matado o rei Duncan na ânsia de usurpar o trono escocês. Um pouco antes da metade do romance, Juan reflete sobre a fala da personagem shakespeariana e o simbolismos deste coração tão branco. A expressão denotaria covardia? culpa? ou a falta de culpa? Independente das conclusões, a peça e todos estas sugestões por trás de uma grande tragédia serão a chave para entender os descalabros da família de Juan, que mesmo o afligindo em exasperação de sentimentos, também o prostrava em afasia e indiferença. 

Resumindo: o livro é muito bom e extremamente recomendável.

Nota: 8,0   


F - Antônio Xerxenesky



Tive a curiosidade de ler este romance, pois o autor, Antônio Xerxenesky, foi um dos indicados pela célebre revista literária inglesa Granta como um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros. Porém o livro não é bom; se assemelha mais às histórias infanto-juvenis que lia com tenra idade do que, como supunha minhas expectativas, uma obra "séria".

Pois bem, o romance, também narrado em primeira pessoa, conta as peripécias insossas de uma assassina, que já de início confessa ser a profissional contratada para assassinar o cineasta Orson Welles. Até aí tudo bem, parece um ponto de partida no mínimo interessante; no entanto, o desenrolar da trama é tão pueril e até pouco imaginativa que com algumas páginas de leitura já percebemos que Antônio não é lá grandes coisas. O único ponto alto do romance é o personagem real retratado. Com a leitura adquirimos, mesmo que de forma superficial, alguns detalhes sobre a vida e a obra de Welles, notável por ter revolucionado o cinema duas vezes, com o clássico "Cidadão Kane" e o ainda subestimado "F for Fake".

Como alento, devo confessar que o livro é de fácil leitura, podendo ser lido de uma só tacada; mas, mesmo assim, não vou relevar ao dar a nota que este bobinho romance merece. Para quem não conhece Welles, vale a leitura; para todos os outros, melhor ler outros livros.

Nota: 3,0


Crônica de uma Morte Anunciada - Gabriel Garcia Márquez



Deste livro não tenho muito a comentar, apenas que é o melhor que li este mês. Depois de muitos anos sem contato com a obra do escritor colombiano, tinha lido "Cem Anos de Solidão" com 17 anos de idade, voltei a me deparar com suas letras, e a experiência foi das melhores. Escrita brilhante, vocabulário com ranços de regionalismo não pedante e estruturação formal de dar inveja. Como o próprio nome diz, trata-se de uma crônica, ficcional é verdade, mas com toda a aparência de uma relato verídico e com falsas pretensões de imparcialidade; é Márquez destilando seu domínio absoluto na profissão de jornalista.

Ao contrário da maior parte de suas obras, "Crônica de uma Morte Anunciada" não possui elementos fantásticos. Relata a morte e as últimas horas de vida de Santiago Nasar, esmiuçando, de diversos pontos de vista, tudo o que permeou este trágico e inevitável evento. Mais do que isso não posso dizer, apenas aconselho, a nível de exortação, que todos leem a obra; vale à pena, e aos olhos, principalmente aos olhos.

Nota: 8,5


A Ilha do Dr. Moreau - H. G. Wells



Bom livro de ficção científica de um autor que antes de se preocupar com o texto, a linguagem ou a narrativa, queria contar histórias interessantes, imaginativas e assustadoras. A ilha é tudo isso e até um pouco mais, pois a ideia de partida é deveras bizarra. Se não vejamos: um náufrago que, salvo por uma embarcação, é levado para uma ilha controlada por um cientista louco que faz bisonhas experiências com animais, tentando transformá-los em seres que se assemelhassem ao humano. Um mote intrigante e cheio de possíveis reflexões sobre ética, comportamento e os limites da ciência e da razão. O melhor de tudo é que estas reflexões, mesmo que incompletas, acontecem; e o desfecho do livro é brilhante. Vale lembrar que a obra foi escrita em 1896, a cento e vinte anos atrás; não obstante, as discussões por trás da superfície desta narrativa fantástica são extremamente atuais.

O livro é bom, de fácil leitura e essencial para os amantes de ficção científica.

Nota: 6,5


O Homem que Amava os Cachorros - Leonardo Padura 



Este foi o livro que mais me exigiu tempo. Suas mais de 600 páginas de perfeita composição de enredo fizeram da minha leitura uma das mais agradáveis dos últimos meses, provando que a literatura latino-americana ainda possui o velho fôlego que provou ter ao longo do século XX.

"O Homem que Amava os Cachorros" é um romance histórico que conta a trajetória do exílio político de Trostky e o seu ulterior assassinato cometido por Ramón Mercader; catalão fundamental no desenvolvimento da trama. Aliás, a personagem do espanhol, o verdadeiro homem que amava os cachorros, é perfeitamente construída, desde o seu nascimento até sua morte. Filho de um casamento burguês, e herdeiro ideológico de sua mãe, Caridad, uma convicta comunista, Ramón, ainda em juventude, vai sendo moldado pelo partido socialista para se transformar em um assassino cego e abrutalhado pelo ódio dos cumpinchas soviéticos de Stálin. Outro personagem marcante do enredo é o cubano Iván, narrador da história e escritor frustrado, não pela falta de talento, que nunca soube ao certo se possuía, mas pela impossibilidade de exercer a mais ínfima liberdade criativa, devido à convulsão política que modificou sua ilha após a revolução de 59.

O livro tenta se manter neutro sobre a possibilidade de concretização dos ideais igualitários defendidos pelos comunistas, sempre insinuando que a culpa pelo fracasso da utopia teria origem não na ideia, porém na ânsia cega de alguns homens que nunca se cansaram do poder, da ganância e da tirania. No entanto, em vários momentos do romance, que se mostra simpático à figura do exilado russo, nos deparamos com algumas dúvidas. Será que o autoritarismo e a violência do regime soviético, encampado por Stálin, desvirtuou o ideário marxista? Ou será que, qualquer que fosse os desdobramentos políticos da União Soviética o resultado seria o mesmo, com mortes e a aniquilação da liberdade? A melancolia de Iván, preso em sua ilha socialista, talvez seja um indício de respostas possíveis.

No mais, Padura, após anos de pesquisa, deixou uma obra bem costurada e sem retalhos. Mostra, ao contrário de seu personagem Iván, que morreu acossado pela dúvida, ser um escritor de requinte e talento. Certamente voltarei a ler alguns de seus romances e ficarei na expectativa dos seus livros vindouros.

Nota: 8,0     
    
   
  O Retrato - Nikolai Gogol



O último livro do mês, por enquanto, foi a pequena obra do afamado escritor russo. O conto é dividido em duas partes que podem, acredito eu, serem lidas independente da ordem. Na primeira parte acompanhamos a caminhada rumo ao tenebroso sucesso do jovem pintor Tchartkov, que, ao adquirir o misterioso retrato que dá título à obra, numa velha loja de antiquários, recebe uma onírica ajuda pecuniária. Na segunda parte, a origem do retrato é explicada. Parece pouco, duas frases para resumir o conto; porém, mais do que isso, pode atrapalhar a apreciação de potenciais leitores.

No livro encontramos algumas discussões interessantes sobre arte, discussões estas que me fez lembrar do conto de Balzac, "A Obra-Prima Ignorada", no entanto, o brilhantismo da obra do francês, passa longe do que pude ler neste regular texto de Gogol. Aliás, o russo já fez melhor, muito melhor; como, por exemplo, em "O Capote", um dos melhores contos que li. Talvez eu esteja pegando pesado com o célebre escritor, talvez a tradução que li não reflita a amplitude da obra, porém, a impressão que tive é que faltou algo; além disso, alguns recursos textuais utilizados me causaram uma bisonha sensação cômica, me lembrando que Gogol sempre se prestou a chocarrice.

Enfim, livrinho bonzinho, mais pro inho...

Nota: 6,0

FG



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