Sinto-me sem inspiração para escrever, talvez fosse melhor gravar uma música no sax para, no futuro, recordar tudo o que tenho sentido. Meu desejo pela morena passou, pois ontem fiz sexo com Tomás e só fiquei pensando nele. Nos seus ombros, na sua pele, boca, pés e sorriso. Senti ele dentro de mim como nunca tinha sentido antes. Foi bom, estava apaixonada, meu corpo inteiro estava apaixonado.
Carolina (30, abril, 2015) - tarde - quinta
Almocei com meu pai e fiz de tudo para provocá-lo. Nos encontramos em um restaurante perto da minha casa e minha falta de inspiração pela manhã converteu-se em raiva quando o vi sorrindo de forma que me pareceu tão falsa. Me cumprimentou com aquele tom de voz insuportavelmente manso ou, como Tomás costuma comentar, plácido, e antes que sentássemos à mesa foi logo perguntando como eu estava. Suas frases eram exageradamente impessoais, como se estivesse executando uma formalidade ou obrigação de pai amoroso e preocupado. Com o rosto cheio de nuvens respondi rispidamente que estava péssima. Queria ver se seu semblante mudava, desfazendo aqueles contornos e desenhos teatrais. Queria a verdade, nem que a verdade fosse raiva, desapontamento, frustração. Mas não houve mudança, deu uma leve gargalhada e perguntou o que estava acontecendo, se eu havia brigado com Tomás. Fiquei em fúria, segurei minhas mãos nas bordas da mesa para evitar que elas o golpeassem. Logo em seguida, no entanto, decidi me acalmar e assumir o controle. Respondi que não estava bem porque faziam séculos que não via, sentia ou ouvia sinceridade, que as pessoas ao meu redor eram falsas, que ele era falso que o mundo era falso. Antes que ele pudesse argumentar, disse que não me lembrava mais a última vez que o seu rosto não exibia aquela expressão podre e caricata de pai vergonhosamente carinhoso. Minhas palavras enfim causaram impacto, o rosto do meu pai empalideceu. Foi lindo. Segundos após aquela frase tão venenosa, sincera e redentora, sorri e segurei as mãos de papai. Olhei para ele como se pedisse desculpas sem negar meu testemunho, tentava deixar bem claro que aquilo era fruto de um sentimento verdadeiro que estava me sufocando a meses, talvez anos. Papai pediu desculpas pela impessoalidade e falta de jeito de se mostrar sincero. Disse que tinha medo de me magoar, que muitas vezes sentia um intenso impulso agressivo e outras tantas queria me oferecer muito carinho, um carinho sincero, verdadeiro. Mas o medo de parecer rude, grosseiro, irracional, piegas, bobo, ridículo, ou de perder a autoridade de pai o fazia parar no meio do caminho e que seus ares de impessoalidade eram no fundo produto de um imenso receio. Balançou minhas mãos e cerrou os dentes antes de dizer, com ligeira raiva, que me amava muito. Seu gesto, é claro, não passou de uma brincadeira, até me soou um pouco falso, mas decidi não implicar com isso, pois certamente suas palavras anteriores eram, sem sombra de dúvida, sinceras. A partir daí o almoço foi ótimo. Conversamos sobre drogas e opção sexual. Não perdi a oportunidade de alfinetar papai com comentários que ele não gostaria de ouvir. Após as ofensas e verdades do início do nosso encontro, foi impossível para ele não demonstrar decepção, afinal, por mais que negasse ou dissesse o contrário, ele ainda era um puta conservador. No final nos despedimos com um forte abraço, naquele momento senti que amava meu pai e que meu pai também me amava muito.
Tomás (30, abril, 2015) - noite - quinta
Vivo um sentimento tépido de abandono. Sinto estar alheio a tudo e a todos, não tenho encontrado qualquer desejo ou motivação que me faça perseguir ou ao menos perscrutar algum objetivo, objeto, ideia ou pensamento. Esta semana não tive vontade de fazer nada; não encontrei ninguém, nem evolui em minhas pesquisas, raciocínios ou elucubrações insossas. Minha tese, assim como meu sentimento, parou no tempo. Tive alguns momentos com Carol, é verdade, no entanto tudo me pareceu tão distante, indiferente, prosaico, sem sentido que não posso confundir meros atos sexuais com o reacender de alguma substância amorosa. Hoje pensei em fazer as malas e viajar sem destino, sozinho e em sincero degredo.
Estou confuso, inerte e sem nenhuma coragem.
Carolina (30, abril, 2015) - noite - quinta
Contei pro Tomás sobre meu encontro com papai, ele, como já deveria ter imaginado, não esboçou qualquer reação nem se esforçou em se mostrar interessado ou em fazer algum comentário. Tomás parece não estar bem, seu semblante fechado e tristonho tem me tirado do sério, mas hoje decidi não brigar. Vou deixá-lo sozinho em casa esta noite, do jeito que ele anda não vai nem notar.
Tomás (30, abril, 2015) - madrugada - quinta
Não consigo dormir. Carol saiu sem me avisar e até agora não voltou. Tenho vontade de ligar pra ela, uma vontade quase insuportável. Nos últimos dias esta parece ter sido minha primeira manifestação genuína que me impele a algo. Talvez seja o ciúme, é muito provável que seja o ciúme; mas dane-se, não vou ligar, não vou dormir, tampouco irei escrever mais nesta porcaria de diário. Como última frase irei gritar em letras garrafais. QUE VÁ TUDO PARA O DIABO
Tomás (30, abril, 2015) - ainda de madrugada - quinta
Não liguei, não dormi, não fiz nada; nem ao menos tive coragem de jogar fora este diário. Quando achei que tudo e todos iriam ao diabo sem mim, percebi que eles na verdade foram a qualquer outro lugar e deixaram o diabo aqui, ao meu lado. Estou em trevas, sem sossego, sem descanso; sem perceber estou me transformando em Harry Haller, o Lobo da Estepe do romance de Hermann Hesse; aliás sorte a minha não ter uma navalha, pois no meu estado daria fim a minha parca existência sem titubear e sem almejar a imortalidade. Agora me sinto sem vida, sem expressão, sem importância. Me sinto um holograma, uma projeção de ser que apenas observa sem ser observado. Onde estará Carol? o que ela está fazendo? Onde eu estou? o que estou fazendo? Acho que uma navalha não seria suficiente para arrancar meu sofrimento indolor, minha inexpugnável sensibilidade ou o vazio dos meus pensamentos.
Sou um nada e carrego o diabo no bolso; mas amanhã, tenho certeza, estarei bem; vou esquecer que uso andrajos e não lembrarei que tenho bolsos. Se lembrar, irei costurá-los.
FG
Tomás (30, abril, 2015) - noite - quinta
Vivo um sentimento tépido de abandono. Sinto estar alheio a tudo e a todos, não tenho encontrado qualquer desejo ou motivação que me faça perseguir ou ao menos perscrutar algum objetivo, objeto, ideia ou pensamento. Esta semana não tive vontade de fazer nada; não encontrei ninguém, nem evolui em minhas pesquisas, raciocínios ou elucubrações insossas. Minha tese, assim como meu sentimento, parou no tempo. Tive alguns momentos com Carol, é verdade, no entanto tudo me pareceu tão distante, indiferente, prosaico, sem sentido que não posso confundir meros atos sexuais com o reacender de alguma substância amorosa. Hoje pensei em fazer as malas e viajar sem destino, sozinho e em sincero degredo.
Estou confuso, inerte e sem nenhuma coragem.
Carolina (30, abril, 2015) - noite - quinta
Contei pro Tomás sobre meu encontro com papai, ele, como já deveria ter imaginado, não esboçou qualquer reação nem se esforçou em se mostrar interessado ou em fazer algum comentário. Tomás parece não estar bem, seu semblante fechado e tristonho tem me tirado do sério, mas hoje decidi não brigar. Vou deixá-lo sozinho em casa esta noite, do jeito que ele anda não vai nem notar.
Tomás (30, abril, 2015) - madrugada - quinta
Não consigo dormir. Carol saiu sem me avisar e até agora não voltou. Tenho vontade de ligar pra ela, uma vontade quase insuportável. Nos últimos dias esta parece ter sido minha primeira manifestação genuína que me impele a algo. Talvez seja o ciúme, é muito provável que seja o ciúme; mas dane-se, não vou ligar, não vou dormir, tampouco irei escrever mais nesta porcaria de diário. Como última frase irei gritar em letras garrafais. QUE VÁ TUDO PARA O DIABO
Tomás (30, abril, 2015) - ainda de madrugada - quinta
Não liguei, não dormi, não fiz nada; nem ao menos tive coragem de jogar fora este diário. Quando achei que tudo e todos iriam ao diabo sem mim, percebi que eles na verdade foram a qualquer outro lugar e deixaram o diabo aqui, ao meu lado. Estou em trevas, sem sossego, sem descanso; sem perceber estou me transformando em Harry Haller, o Lobo da Estepe do romance de Hermann Hesse; aliás sorte a minha não ter uma navalha, pois no meu estado daria fim a minha parca existência sem titubear e sem almejar a imortalidade. Agora me sinto sem vida, sem expressão, sem importância. Me sinto um holograma, uma projeção de ser que apenas observa sem ser observado. Onde estará Carol? o que ela está fazendo? Onde eu estou? o que estou fazendo? Acho que uma navalha não seria suficiente para arrancar meu sofrimento indolor, minha inexpugnável sensibilidade ou o vazio dos meus pensamentos.
Sou um nada e carrego o diabo no bolso; mas amanhã, tenho certeza, estarei bem; vou esquecer que uso andrajos e não lembrarei que tenho bolsos. Se lembrar, irei costurá-los.
FG
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